domingo, 18 de marzo de 2012

TRADICÃO DO 1.º MILÊNIO OPOSTA À DO 2.º ?

TRADICÃO DO 1.º MILÊNIO OPOSTA À DO 2.º ?

Redigido em jul/2011, posto neste site em 12/02/2012                                        Arnaldo Xavier da Silveira 


Nota do Autor: Redigi estas notas logo que apareceu o artigo do prof. Morini aqui comentado, mas não as divulguei. Não consta que as numerosas críticas àquele artigo tenham considerado os pontos de doutrina por mim abordados. Julgando-os importantes, submeto-os aos amigos. - AXS.







O historiador Enrico Morini 

1) - O maior centro de interpretação do Vaticano II como uma ruptura em face da Tradição é a chamada "escola de Bolonha", representada sobretudo pelos professores Giuseppe Alberigo, falecido, e Alberto Melloni, ambos descendentes espirituais do padre Giuseppe Dossetti, fundador da escola. Alberigo publicou um estudo enciclopédico do Vaticano II, em cinco volumes, traduzido para diversas línguas, tido como obra de referência sob o ponto de vista progressista. O livro brilhante do prof. Roberto de Mattei, "Il Concilio Vaticano II - Una storia mai scritta" (Lindau, Torino, 2010), atinge frontalmente os brios da "escola de Bolonha". 

2) - O prof. Morini, de 64 anos de idade, que ensina história da Igreja cismática oriental na universidade estatal de Bolonha e na faculdade teológica de Emilia Romagna, declara não ser da "escola de Bolonha", mas ter tido o padre Dossetti como diretor espiritual, e participar do entendimento de que o Vaticano II rompeu com a Tradição recente.  


Primeira intervenção de um defensor da "ruptura" 

3) - Em 13-6-11 o prof. Morini redigiu uma nota sobre a Tradição, endereçada a Sandro Magister, conhecido comentarista de assuntos do Vaticano, publicada em 21-6-11 no site deste último, www.chiesa.espressonline.it. O autor da nota, como Sandro Magister e outros que escrevem sobre o trabalho, ressalta que se trata da primeira manifestação de um seguidor da tese da "ruptura", no grande debate atual sobre a interpretação do Concílio. Classificada como "surpreendente", há quem comente que essa intervenção talvez agrade mais aos tradicionalistas do que aos inovadores. 

4) - É curioso que o único tradicionalista referido é o prof. de Mattei. Na introdução de Sandro Magister e no texto, fala-se em "debate cerrado", em "grande discussão", em "debate muito vivo" sobre a interpretação do Concílio, mas o prof. Morini só cita, como adversário de sua tese, o prof. de Mattei.

 
A teoria dos dois milênios, do prof. Morini

5) - A tese central do estudo é que "a Igreja é um organismo vivo, que sua tradição está sujeita a uma evolução, e também a regressões". Que o Vaticano II "foi num determinado momento, intencionalmente, ao mesmo tempo continuidade e ruptura". Que manteve "a continuidade mais absoluta com a tradição do primeiro milênio", o que, como diz literalmente o autor, "comporta de fato uma ruptura implícita ─ perdão pela esquematização excessiva ─ com a tradição católica do segundo milênio". 

6) - Estudioso dos cismáticos orientais, o autor dá exemplos de instituições, orações e princípios antigos dos ortodoxos, restaurados pelo Vaticano II, e marca como divisor de águas o início do segundo milênio, uma vez que o cisma do Oriente data de 1054. Na verdade, portanto, o que ele preconiza é um retorno à tradição do tempo anterior ao cisma, afirmando, ao menos implicitamente, que os orientais tinham razão em 1054. 

7) - O prof. Morini simplesmente nega que, a partir do século XI, a Igreja tenha mantido a Tradição divina, apostólica e eclesiástica do primeiro milênio. Nessa linha, ele entende que a reforma gregoriana introduziu "uma visão eminentemente filosófica das verdades teológicas e o interesse excessivo pela canonística", "em detrimento da Sagrada Escritura e dos Padres da Igreja". Não condena apenas a escolástica, mas também "a Reforma tridentina, com sua dogmatização rígida", a "confiscação da Sagrada Escritura aos simples fiéis", "a apoteose da 'monarquia' pontifícia com o Vaticano I". 

8) - Pormenorizando suas posições, ele sustenta que em liturgia, igualmente, voltou-se a práticas mais condizentes com a tradição do primeiro milênio, e que "houve uma ruptura evidente com a liturgia pré-conciliar, que era notoriamente uma criação tridentina". Louva a aceitação da Missa de São Pio V ao lado da de Paulo VI, pois isso "tem o mérito indiscutível de restabelecer na Igreja latina o pluralismo litúrgico que caracteriza o primeiro milênio". É ardentemente favorável a retirar do Credo o "filioque", que não é do símbolo de Niceia e que os orientais cismáticos jamais aceitaram, segundo o qual o Espírito Santo procede do Pai, mas também do Filho, disputa já das primeiras heresias trinitárias. É contrário "ao sacerdócio das mulheres e a desenvolvimentos aberrantes nos domínios da ética e da bioética", bem como a pastores e grupos de fieis que, em matéria de colegialidade, "introduziram práticas subversivas precisamente no que diz respeito à tradição da Igreja antes das divisões". 


O que pensar da tese do prof. Morini? 

9) - A tese do prof. Enrico Morini não pode ser aceita. Para fins apenas retóricos, ele se pergunta se a tradição "é um fato unívoco, ou se não há antes uma pluralidade de tradições na diacronia mais do que milenar da Igreja". ─ Nessa diacronia, isto é, nos diversos tempos e períodos da vida da Igreja, ele entende que as tradições variaram substancialmente, inexistindo portanto uma Tradição única, sempre nova e sempre velha, imune a "rupturas". ─ Seu afastamento do bom caminho se manifesta de forma crua na afirmação de que o segundo milênio da Igreja rompeu com o primeiro. Em boa lógica daí se deduziria que um católico pode recusar os dogmas de Trento, do Vaticano I, incluindo o da infalibilidade papal e outros. 

10) - Ele defende a posição, tantas vezes condenada pelos Papas dos últimos séculos, que enaltece a Igreja de tempos passados, para na verdade fazer valerem os desvios de hoje. Ora, todo o explicitado pela Santa Igreja, tanto no primeiro milênio como no segundo, constitui um aprofundamento orgânico no conhecimento do dogma revelado. E não pode existir contradição nesse aprofundamento, que sempre ocorreu “eodem sensu, eademque sententia (“no mesmo sentido e na mesma sentença”). Os seguintes textos de Pio XII, na Humani Generis, demonstram á saciedade como o prof. Morini se encontra fora do reto caminho: 
N.º 14 - “(...) o que alguns pretendem é diminuir o mais possível o significado dos dogmas e libertá­los da maneira de exprimi-los já tradicional na Igreja, e dos conceitos filosóficos usados pelos doutores católicos, a fim de voltar, na exposição da doutrina católica, às expressões empregadas pela Sagrada Escritura e pelos santos Padres. Esperam que, desse modo, o dogma, despojado de elementos que chamam extrínsecos à revelação divina, possa comparar-se frutuosamente com as opiniões dogmáticas dos que estão separados da unidade da Igreja (...)”.
N.º 16 - “(...) as noções e os termos que os doutores católicos, com geral aprovação, foram compondo durante o espaço de vários séculos para chegar a obter alguma inteligência do dogma, (...) fundam-se realmente em princípios e noções deduzidas do verdadeiro conhecimento das coisas criadas; dedução realizada à luz da verdade revelada, que, por meio da Igreja, iluminava, como uma estrela, a mente humana. Por isso, não há que admirar terem sido algumas dessas noções não só empregadas mas também sancionadas por concílios ecumênicos; de sorte que não é lícito apartar-se delas”.
N.º 18 - “Desgraçamente, esses amigos de novidades facilmente passam do desprezo da teologia escolástica ao pouco caso e até mesmo ao desprezo do próprio magistério da Igreja, que tanto prestígio tem dado com a sua autoridade àquela teologia. (...) Embora este sagrado magistério, em questões de fé e moral, deva ser para todo teólogo a norma próxima e universal da verdade (visto que a ele confiou nosso Senhor Jesus Cristo a guarda, a defesa e a interpretação do depósito da fé, ou seja, das Sagradas Escrituras e da Tradição divina), contudo, por vezes se ignora, como se não existisse, a obrigação que têm todos os fiéis de fugir mesmo daqueles erros que se aproximam mais ou menos da heresia e, portanto, de observar também as constituições e decretos em que a Santa Sé proscreveu e proibiu tais falsas opiniões. (...) Alguns há que de propósito desconhecem tudo quanto os sumos pontífices expuseram nas encíclicas sobre o caráter e a constituição da Igreja, a fim de fazer prevalecer um conceito vago, que eles professam e dizem ter tirado dos antigos Padres, principalmente dos gregos (...)”. 
N.º 23 - “(...) o sentido literal da Sagrada Escritura e sua exposição, que tantos e tão exímios exegetas, sob a vigilância da Igreja, elaboraram, deve ceder lugar, segundo essas falsas opiniões, a uma nova exegese a que chamam simbólica ou espiritual; por meio dela, os livros do Antigo Testamento, que seriam atualmente na Igreja uma fonte fechada e oculta, se abririam finalmente para todos”.

11) - Assim, pode-se dizer que a intervenção do prof. Morini é benvinda, porque revela às claras vários aspectos do progressismo que muita gente não vê.  


Observações colaterais 

12) - Note-se que, abandonada a boa doutrina, cada qual segue a interpretação e o caminho que bem entende. Para uns, o Vaticano II voltou aos tempos dos primeiros cristãos. Para outros, aos de antes de Constantino. Para o prof. Morini, ao ano de 1054. Para outros ainda, não preocupados com datações históricas, a Igreja simplesmente abriu suas portas para o liberalismo do século XIX, o modernismo do século XX, o progressismo atual. Ou as abriu para os cismáticos orientais, os protestantes, os chamados evangélicos, os judeus, os muçulmanos, os não-cristãos em geral e mesmo os ateus. ─ E em cada caso o intérprete progressista tira suas conclusões pessoais, que tem como absolutas e definitivas. 

13) - O prof. Morini indica o que considera o "princípio inspirador" da "hermenêutica correta do concílio": "a retomada da tradição do primeiro milênio", com a aceitação na Igreja, sem mais, dos cismáticos orientais. 14) Tenha-se presente o repúdio radical àescolástica, por parte dos progressistas de todos os naipes. É assim que o prof. Morini invectiva a escolástica nascente por um trato eminentemente filosófico da teologia, acusa Trento de "uma dogmatização rígida, que foi mesmo além dos pressupostos da Igreja medieval", e mantém um silêncio que brada aos céus, quanto à brilhante neoescolástica dos séculos XIX e XX.

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