Um aspecto da pietas austriaca pouco considerado
Péricles Capanema
Por que, quando se fala em um tipo de piedade especial praticado na Áustria, não se emprega a expressão normal österreichische Frömmigkeit? Fala-se em pietas austriaca. É simples. Ela se distingue da piedade comum. Tem características que se expressam melhor às pessoas com senso histórico por meio do bronze do latim. No caso, o latim evoca com mais energia uma realidade que outrora teve vida e foi influente. De fato, é um tempo antigo, as características são antigas e quase não existem mais. Mas são atuais. Em especial pela consolidação da União Européia. Vamos ver.
Europeus de todas as épocas sempre perceberam a necessidade de alguma forma de unidade de seu continente. Nem só europeus percebem isso. E, como disse, não é fenômeno recente. Vem desde a Antiguidade pagã. O grande problema tem sido o como fazer.
Os romanos da Antiguidade, primeiro na República e depois no Império, viam a necessidade de congregar os europeus (mais ainda, os povos em torno de Roma) num grande espaço de convivência, sob a égide do Direito. A ameaça da avalanche bárbara era muito grande. Não foi só fogo de conquista e ambição de poder o que moveu os romanos. Havia um programa subjacente, com traços muito positivos. Roma congregou, civilizou, procurou a unidade, deu aos povos o Direito, suas instituições políticas, assim como sua cultura e seus hábitos de governo. Foram grandes instrumentos de convivência. No meio da desorientação do mundo bárbaro, o Império aparecia como barca de salvação. Tudo isso lhe deu um prestígio imenso.
A destruição do Império Romano significava a ruína e o caos para os povos que Roma mantinha em sua área de poder. Eles, mesmo sofrendo, tantas vezes injustamente, a garra da águia romana, sentiam bem o que lhes era proporcionado por aquela grande união política. Em certo sentido, seus piores temores se realizaram quando o Império Romano ruiu em fins do século V.
Nunca mais a Europa esqueceu essa primeira grande tentativa. Ela viveu no imaginário dos povos saudosos e era até idealizada por eles. E, por isso, ansiavam por sua volta. No ano 800, o Papa Leão III tentou, ao coroar Carlos Magno imperador do Ocidente, instaurar (de certa forma, restaurar), em condições novas, um ordem política que promovesse a convivência profícua de todos os povos europeus. Mais uma vez, em boa parte o ideal foi destruído pela incompreensão e maldade dos homens. O império carolíngio se desfez e a Europa sofreu a anarquia como flagelo social. Este ideal, porém, continuou a pulsar no coração de incontáveis europeus. Deu vida à marcha atribulada do Sacro Império Romano Alemão. Persistiu nas instituições até 1806, quando Napoleão o extinguiu oficialmente.
Em todos estes séculos, uma dinastia, entre todas, se destacou como herdeira do ideal romano, continuado e aperfeiçoado nas aspirações carolíngias. Nem precisaria nomeá-la. A política dos Habsburgos, por séculos, foi a procura de alguma forma de unidade européia. Os Habsburgos, de fato, patrocinaram uma política mais que milenar, a busca de um grande espaço de convivência, onde os povos europeus pudessem desabrochar com segurança. A própria noção de Cristandade se insere aqui, é a convivência dos povos cristãos sob o bafejo dos Soberanos Pontífices.
Convém agora lembrar uma realidade diferente. Outras dinastias e outros grandes políticos se afastaram dessa rota, diríamos, romana, e procuraram com pertinácia o fortalecimento dos respectivos Estados nacionais, o que provocou, necessariamente, choques sem solução. Lembro apenas, para não me alongar, Richelieu, Bismarck, Cavour. Surgiu, então, como solução precária e instável a política do equilíbrio europeu. Era a política “sensata”, um jeito de impedir o desastre contínuo, dos que se reconhecem adversários inevitáveis. Séculos de nacionalismos bestas trouxeram guerras, destruições pavorosas de vidas, de riquezas, de bens da cultura. Gerações e gerações de revanchards remoeram ressentimentos e ódios desnecessários. Que depois desaguavam na sangueira. Era uma situação anômala que urrava por seu fim.
Essa necessidade de pôr fim a uma situação destrutiva esteve no nascedouro da União Européia. Contudo, a nova iniciativa não mais foi bafejada pelo Direito Romano. Nem pelos princípios que manaram do Gólgota. Veio enfunada por um espírito igualitário, coletivista e libertário. Ateu. É um espírito de maldição. Traz no bojo tragédias mais devastadoras que as que vieram com o fim do Império Romano, do Império de Carlos Magno e depois da política multissecular dos Habsburgos (aqui, bastaria observar o que penaram os povos da antiga Iugoslávia; e ainda penam).
Todas essas iniciativas vitoriosas viveram de um espírito, uma espécie de mística as animava. Refletiam-se nos fulgores da águia romana, no som evocativo da Chanson de Roland, na presença imperial e acolhedora de Maria Teresa. E em infinitas coisas mais. Por isso marcaram tanto a História. Quando sucumbiram, foi, sobretudo, porque já brilhavam pouco aos olhos dos seus participantes as luzes que as animavam.
Volto à pietas austriaca. Quem participava autenticamente do ambiente impregnado da pietas austriaca, no que ela tinha de mais sadio (não vou falar de contrafações, nem de deformações; esta parte, deixo de bom grado aos apressados detratores) também esteve embebido de um espírito. Era um espírito de harmonia. Mesmo que iniciante, bruxuleante. A pietas austriaca destacou-se, sob aspecto fundamental, por sentir com nitidez muito própria as incontáveis inter-relações da ordem espiritual e da ordem temporal. Tinha em si potencial para uma grande visão que tendia a abarcar, num lance só, as duas ordens em que concomitantemente se movem os homens. Nesse sentido, não se limitava aos essenciais e prioritários problemas da vida espiritual pessoal. Quem respirava seus ares, preocupava-se mais facilmente com as realidades da ordem temporal, na sociedade e no Estado. Com isso, analisava com mais naturalidade “sub species aeternitatis” aspectos relevantes da ordem temporal. Este olhar interessado (sob outro prisma, distante) estimulava a temperança e isenção na consideração, e até na defesa, dos interesses, fossem eles pessoais, familiares, regionais ou nacionais. Era uma visão que fazia mais fácil a aceitação nos fatos de um princípio essencial à ordem temporal cristã, o de subsidiariedade.
Em resumo, insinuei acima, existe uma solução para quem anseia ver os povos europeus trabalhando
Qual é? Está na Igreja Católica. Afunda suas raízes no mesmo solo em que medrou a pietas austriaca. Trará a difusão muito ampla de um espírito de harmonia. Preserva, une, melhora. Tem mais, representa continuidade: continua a política romana, continua a política carolíngia, continua a política habsburguiana. Todavia, acrescenta, traz atualizações e aperfeiçoamentos. Pela natureza do espírito que estimula, contém antídotos eficazes contra nacionalismos perigosos, coletivismos tirânicos e anarquismos desagregadores. A pietas austriaca abre uma porta extraordinária. Vamos entrar por ela.
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