BLASCO VALLÈS, Almudena, e COSTA, Ricardo da (coord.). Mirabilia 10
A Idade Média e as Cruzadas
La Edad Media y las Cruzadas – The Middle Ages and the Crusades
Jan-Jun 2010/ISSN 1676-5818
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O pensamento de Santo Tomás de Aquino (1225-1274) sobre a vida
militar, a guerra justa e as ordens militares de cavalaria
The thought of Thomas Aquinas about military life, just war and military
orders of chivalry
Ricardo da COSTA1
Armando Alexandre dos SANTOS2
Resumo: O artigo faz uma breve exposição do pensamento de Santo Tomás de Aquino
acerca da liceidade da vida militar e do conceito de guerra justa, bem como sua justificativa
teológica, no âmbito das Cruzadas, das Ordens militares. Para isso, recorre inicialmente à
fundamentação bíblica. A seguir, elenca sucintamente alguns dos santos da Igreja, para
discorrer sobre o pensamento do Aquinate sobre o tema.
Abstract: The article briefly presents the thought of Thomas Aquinas about the legitimacy
of military life and the concept of just war, and its theological justification in the context of
the Crusades, to the military orders. For that, initially uses the Biblical foundation. The
following briefly lists some of the saints of the Church, to discuss the thought of Aquinas
about the subject.
Palavras-chave: Cruzadas, vida militar, vida religiosa, cavalaria.
Keywords: Crusades – Military life – Religious life – Chivalry.
***
I. Introdução
Uma das conseqüências mais imediatas da conquista de Jerusalém, em 1099, foi a
constituição de ordens religioso-militares de cavalaria. Após a Cidade Santa ser
conquistada, os maometanos permaneciam senhores das vastas regiões que a
circundavam, fato que tornava as rotas de peregrinos ainda bastante inseguras. As
primeiras ordens de cunho religioso e militar – a dos Templários, a dos Hospitalários de
São João de Jerusalém, a do Santo Sepulcro, a dos Cavaleiros Teutônicos – tiveram,
todas, origem na dedicação de cavaleiros europeus em prosseguir o cumprimento de seu
1 Medievalista da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Acadèmic correspondente n. 90 da Reial
Acadèmia de Bones Lletres de Barcelona. Site: www.ricardocosta.com
2 Membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). E-mail: aasantos@uol.com.br
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voto ou propósito de cruzada, protegendo os peregrinos e também assistindo-os em
suas doenças.3
Imagem 1
Detalhe do riquíssimo santuário de ouro da Igreja de Santa Isabel (concluída em 1235 no
sopé da colina do castelo de Marburg), construção levada a cabo pelos cavaleiros
teutônicos com o apoio do landgrave da Turíngia e em honra de Santa Isabel da Hungria e
da Turíngia (1207-1231). As duas cenas mostram um cavaleiro cruzado italiano que chega
para dar a notícia a Isabel da morte de seu marido na cruzada, o príncipe Ludwig da
Turíngia (1220-1227), e o sofrimento da santa com a notícia. A guerra santa estava
inteiramente na vida cotidiana dos medievais no tempo de Santo Tomás de Aquino.
Entendia-se que, obrigando-se por voto e desempenhando suas atividades militares por
dedicação religiosa, a prática da vida militar era consagrada, era santificada. A guerra,
portanto, era um fato que não excluía a santificação do guerreiro de Deus. Por ser
considerada natural pela sociedade de então, a Igreja Católica teve extrema dificuldade
para controlar a belicosidade dos europeus.
São bem conhecidas as operações da Pax Dei, as Tréguas de Deus, a sacralização da cavalaria
e, por fim, já no âmbito das Cruzadas, a instituição das ordens militares de Cavalaria.4
3 BASCAPÈ, Giácomo C. L’Ordine Sovrano di Malta e gli Ordini Equestri della Chiesa nella Storia e nel Diritto.
Milano: Casa Editrice Ceschina, 1940. Para o início da Ordem do Templo, ver COSTA, Ricardo da.
“Los inicios de la Orden del Temple según Guillermo de Tiro (c. 1127-1190) y Jacobo de Vitry
(†1240)”. Internet, http://www.ricardocosta.com/pub/iniciotemple.htm
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Pouco a pouco, a Igreja lapidou sua doutrina acerca das noções de guerra justa e de
guerra santa.
A Igreja não ensinou – nem poderia ensinar – o pacifismo às culturas bárbaras que, após
as grandes invasões do século V, se mesclaram à cultura romana (também bastante
violenta).5 Pelo contrário: ensinou-lhes o ideal da guerra justa, o ideal do guerreiro cristão,
o ideal da Cavalaria.6 Na realidade, a Igreja sempre viu com bons olhos a condição
militar, embora geralmente se suponha que o Cristianismo, no seu início, tenha sido uma
religião eminentemente pacifista e somente pouco a pouco tenha desenvolvido, no
decurso dos séculos, sua teoria da guerra justa.7
II. A base doutrinal
Na Bíblia, são freqüentes as referências à vida militar, sobretudo no Antigo Testamento,
mas também no Novo e, mesmo, nos Evangelhos. Nestes últimos, encontram-se várias
referências, algumas explícitas, outras metafóricas, para significar, por meio de imagens
da vida militar, as lutas e os combates de caráter espiritual. “O Reino de Deus adquire-se
pela força, são os violentos que o conquistam” (Mt 11, 12), ensinou Cristo, que também
foi categórico nesta outra passagem: “Não julgueis que vim trazer a paz à Terra; não vim
trazer a paz, mas a espada” (Mt 10, 34).
Jesus também não censurou aos seus apóstolos levarem espadas, pelo contrário, lhes
disse:
Quando eu vos mandei sem bolsa, sem alforje e sem sandálias, porventura faltou-vos
alguma coisa? (...) Porém, agora, quem tem bolsa, tome-a, e também alforje, e quem não
tem espada, venda o seu manto e compre uma. (...) Eles responderam: Senhor, eis aqui
duas espadas. Jesus disse-lhes: “É suficiente” (Lc, 22, 35-38).
No Evangelho de Lucas, lemos que, quando alguns soldados perguntaram a João
Evangelista como deveria ser o seu comportamento, o precursor do Messias lhes
aconselhou: “Não façais violência sobre as pessoas, não façais denúncias injustas, mas
4 COSTA, Ricardo da. “A cavalaria perfeita e as virtudes do bom cavaleiro no Livro da Ordem de
Cavalaria (1275), de Ramon Llull”. In: FIDORA, A. e HIGUERA, J. G. (eds.) Ramon Llull caballero de la
fe. Cuadernos de Anuário Filosófico – Série de Pensamiento Español. Pamplona: Universidad de Navarra, 2001,
p. 13-40, Internet, http://www.ricardocosta.com/pub/cavaperf.htm
5 COSTA, Ricardo da. “Do fim do Mundo Antigo à Alta Idade Média (100-600 d.C.)”. Palestra
proferida no “Café Geográfico” da UFES no dia 16 de abril de 2010. Internet,
http://www.ricardocosta.com/pub/Do%20fim.pdf
6 DE MATTEI, Roberto. Guerra Justa, Guerra Santa – Ensaio sobre as Cruzadas, a Jihad islâmica e a tolerância
moderna. Porto: Livraria Civilização Editora, Porto, 2002.
7 FLORI, Jean. Guerre sainte, jihad, croisade – Violence et religion dans le christianisme et l’islam. Paris: Éditions
du Seuil, 2002; FLORI, Jean. A Cavalaria – A origem dos nobres guerreiros da Idade Média. São Paulo:
Madras, 2005.
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contentai-vos com o soldo que vos é devido” (Lc 3,14). Tomás de Aquino (1225-1274)
comenta esse trecho nas glosas às Sentenças de Pedro Lombardo (c. 1100-1160):
Miles secundum consilium Joannis Baptistae neminem concutiat. Contentus sit justis
stipendiis. Et quod non utatur officio militari ad ostentationem, sed ad utilitatem Ecclesiae
et reipublicae et ad exercitium virium.
O soldado, de acordo com o conselho de João Batista, a ninguém extorqua dinheiro, mas
se contente com seu justo estipêndio. E não faça uso do ofício militar para ostentação, mas
para a utilidade da Igreja e da sociedade temporal, assim como para o exercício das forças.8
Esse mesmo conselho de João Batista é também comentado por Santo Agostinho (354-
430), o qual ressalta que, se São João aconselhou a que se contentassem com o seu
soldo, obviamente não censurou nem proibiu sua profissão militar:
Si christiana disciplina omnino bella culparet, hoc potius consilium salutis petentibus in
Evangelio daretur, ut abciicerent arma, seque militiae omnino subtraherent. Dictum est
autem eis: Neminem concutiatis; estoti contenti stipendiis vestris. Quibus proprium
stipendium sufficere praecepit, militare non prohibuit.
Se a disciplina cristã condenasse absolutamente todas as guerras, o conselho mais
adequado à salvação dos que as praticam seria que abandonassem as armas e se afastassem
inteiramente da vida militar. No entanto, foi-lhes dito: Não façais violência sobre ninguém,
mas contentai-vos com o soldo que vos é devido. Se lhes ordenou que se contentassem
com a própria remuneração, não lhes proibiu a prática militar.9
Ainda a respeito desses soldados que interrogaram a João Evangelista, o respeitado
exegeta Cornélio a Lapide (1567-1637) comenta que interrogaram o santo porque,
impressionados e compungidos com a censura que este fazia aos vícios do seu tempo e
às ameaças de castigos no Inferno, e conscientes das rapinas e ainda outros crimes que
militares costumam cometer, pediram-lhe um conselho de como deveriam proceder para
alcançarem o perdão divino e levarem uma vida honesta e salutar.
Em sua resposta, o Evangelista lhes indicou três práticas opostas aos três principais
crimes que militares costumavam cometer (violência, calúnia e rapina): 1) Não fazer
violência contra as pessoas 2) não fazer denúncias injustas 3) contentar-se com o soldo.
Tacitamente, pois, deixou claro aos que o consultavam que a vida militar, como também
a guerra, são lícitas, desde que observadas essas três condições:
8 Commentaria in Sententiarum, 4, d. 16, q. 4., a. 2, q. 3, c. Não conseguimos encontrar o próprio original
dos Comentários do Aquinate às Sentenças, para conferir todo o contexto em que essa frase foi escrita,
mas ela é muito clara. Transcrevemo-la da Tabula Aurea (In: Opera Sancti Thomai Aquinatis Index seu
Tabula Aurea Eximii Doctoris F. Petri de Bergomo, Editiones Paulinae, 1960, p. 618).
9 Epist. ad Marcellinum, 139, c. II, 15, col. 531, apud Summa Theologiae, II-IIae qu.40, a.1.
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Audientes Johannem detonantem in vitia, eisque gehenam minitantem, conscii sibi
rapinarum aliorumque scelerum quae milites committere solent, voce Joannes compuncti,
aeque ac publicani, ab eo poscunt remedium poenitentiae, vitae honestae et salutis: quibus
tria assignat Joannes tribus militum vitiis opposita, quorum primum est violentia;
secundum, calumnia; tertium, rapina. (...) Tacite ergo insinuat Joannes, positis hisce tribus
conditionibus licere militare, et bellum esse licitum, uti docent S. Ambrosius serm. 7, et S.
August. lib 22, contra Faustum, cap. 74.
Os que ouviam João tonitruando contra os vícios e eram por ele ameaçados com o fogo da
Gehena, como tinham consciência de suas próprias rapinas e dos outros crimes que os
militares costumam cometer, compungidos, à maneira de publicanos, com as palavras de
João, lhe pediram um remédio de penitência, de vida honesta e salutar; e João lhes
assinalou as três coisas que se opõem aos três vícios próprios dos militares, dos quais a
violência é o primeiro, a calúnia é o segundo e a rapina o terceiro. Tacitamente, pois, João
lhes significou que, observadas essas três condições, é lícito o exercício militar, como
também é lícita a guerra, conforme ensinam S. Ambrósio (sermão 7) e S. Agostinho (livro
22, contra Fausto, cap. 74).10
Jesus ainda elogiou publicamente o centurião romano que lhe pediu que curasse seu
servo enfermo, e o atendeu. Longe de censurá-lo pela profissão que exercia, disse dele:
“Em verdade vos digo: não achei fé tamanha em Israel” (Mt 8,10). Foi também outro
militar, o centurião Cornélio, o primeiro gentio a ser atraído para a Igreja pelo ministério
pessoal de São Pedro, segundo se lê nos Atos dos Apóstolos (caps. 10 e 11, 1-21).
É verdade que Cristo aconselhou a não resistência aos que nos ofendem: “Digo-vos que
não resistais ao mal, mas se alguém te bater na tua face direita, apresenta-lhe também a
outra” (Mt, 5,39). Também é verdade que ele louvou como bem-aventurados os
pacíficos: “Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus” (Mt,
5, 9). Igualmente, Ele censurou São Pedro quando este reagiu violentamente, ferindo
com sua espada um dos guardas que, no Horto das Oliveiras, foram prendê-lo: “Põe a
tua espada no seu lugar, porque todos os que tomarem espada morrerão à espada” (Mt,
26,52).
No entanto, o mesmo Cristo, que assim ensinou, violentamente expulsou do Templo os
vendilhões, derrubando suas mesas e cadeiras (Mt 21, 12-17; Mc 11, 15-17; Lc 19, 45-46)
e exprobrou os fariseus com linguagem violenta, amaldiçoando-os rudemente (Mt 23, 1-
36; Mc 12, 38-40; Lc 15, 45-47).
Durante o interrogatório de Anás, um dos guardas aproximou-se de Jesus e o
esbofeteou. Jesus, porém, não ofereceu a outra face; pelo contrário, interpelou o
agressor: “Se falei mal, mostra o que eu disse de mal; mas se falei bem, por que me
feres?” (Jo 18,23).
10 A LAPIDE, Commentaria in Scripturam Sacram, t. XVI (Commentarii in S. Lucae Evangelium), p. 699.
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Não há contradição nessa atitude de Cristo com o conselho que dera, de não resistir,
como realça e explica Tomás de Aquino:
Aliquis potest non resistire malo dupliciter. Uno modo, condonando propriam iniuriam. Et
sic potest ad perfectionem pertinere, quando ita fieri expedit ad salutem aliorum. Alio
modo, tolerando patienter iniurias aliorum. Et hoc ad imperfectionem pertinet, vel etiam
ad vitium, si aliquis potest convenienter iniurianti resistere. Unde Ambrosius dicit, in libro
De offic: Fortitudo quae bello tuetur a barbaris patriam, vel domi defendit infirmos, vel a
latronibus sócios, plena iustitia est”.
Pode-se não resistir ao mal de duas maneiras: a primeira consiste em perdoar a
injúria pessoal, e pode isso ser necessário para a perfeição quando o exige o bem dos
demais. A outra consiste em sofrer com paciência as injúrias feitas a outros, e isso é
imperfeição, ou até vício, se se pode resistir devidamente ao que procede injustamente. Por
isso diz Santo Ambrósio (Livro De officiis): 'É perfeita justiça defender com a guerra a pátria
contra os bárbaros, ou proteger os fracos na própria região, ou ajudar os amigos contra
ladrões' (II-IIae, q. 188, a.3, ad 1) (os grifos são nossos).
A fortiori tem-se o dever de resistir quando a injustiça não é feita contra o próximo, ou
contra a própria pátria, mas contra Deus e Sua Igreja. A esse respeito, pouco depois das
palavras anteriormente citadas, Tomás de Aquino transcreve o texto de São João
Crisóstomo (349-407): “É suprema impiedade não tomar em consideração as injúrias
feitas contra Deus” (Injurias Dei dissimulare nimis est impium).11
III. Alguns dos santos guerreiros
Por outro lado, é muito grande o número de santos canonizados pela Igreja Católica que
exerceram ativamente funções militares. A Igreja os apresenta como vivos modelos de
perfeição cristã, para serem admirados e imitados pelos fiéis.12 Se a condição militar
fosse, de si, pouco própria para a santidade, não seriam eles tão numerosos.
Lembremos, nos primeiros séculos da Era Cristã, desde o legendário São Jorge a São
Sebastião (256-286), São Maurício (séc. III), e seus companheiros da famosa Legião
Tebana (também conhecida como os Mártires de Agaunum), legião romana de 6.666
homens que se converteram ao catolicismo e foram martirizados juntos.
Mas há mais. No século VI, Santo Elesbão, imperador negro da Etiópia que armou uma
“cruzada” e atravessou o Mar Vermelho para combater perseguidores da fé católica na
Arábia; na época das Cruzadas, São Luís IX (1214-1270), rei da França, que organizou e
comandou duas expedições militares que foram ao Oriente com a intenção de
11 Super Matheum, apud II-IIae, q. 188, a.3, ad 1.
12 PROFILLET, Abbé Charles. Les Saints militaires. Martyrologe, vies et notices. Paris: Retaux-Bray, 1890, 6
vols.
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reconquistar o Santo Sepulcro13; na mesma época, São Fernando III (1199-1252), rei de
Leão e Castela, passou toda a sua vida em contínua luta contra os mouros que haviam
invadido a Península Ibérica.14
Lembremos também o herói português São Nuno Álvares Pereira (1360-1431), do qual
descenderam os reis de Portugal e os imperadores do Brasil: foi militar e estrategista e,
ainda muito jovem, derrotou os invasores castelhanos na célebre batalha de Aljubarrota
(1385).15 São Nicolau de Flue (1417-1487), de origem camponesa, santo suíço
considerado o pai de sua terra, porque salvou e consolidou a unidade da Confederação
Helvética, foi militar em certa fase de sua vida, combatendo com a espada na mão direita
e o rosário na esquerda.16
Em 1456, o franciscano São João de Capistrano (1386-1456), já septuagenário e
alquebrado pelas doenças, ainda pregou uma cruzada contra os turcos maometanos que
ameaçavam a Cristandade. Com habilidade diplomática conseguiu articular alianças de
príncipes, incitou ânimo às tropas reunidas e foi a alma propulsora da vitória obtida em
Belgrado, em 1456, sobre inimigos muito mais numerosos. Durante a batalha, percorria
as fileiras católicas com um crucifixo nas mãos, incentivando os guerreiros a
combaterem por amor a Jesus Cristo. Três dias depois da vitória, faleceu.17
Uma pessoa habituada a praticar, por amor a sua pátria, as virtudes naturais próprias da
vida militar, tais como a fortaleza, o senso do dever, a disciplina, o amor à hierarquia, a
capacidade de dedicação e, se preciso, o sacrifício heróico, em prol das grandes causas,
poderá passar a praticar análogas virtudes na ordem sobrenatural, por amor de Deus,
mais facilmente (do ponto de vista psicológico) do que outra pessoa que não tenha o
hábito natural delas.18
Não procede, pois, uma intelecção do cristianismo, tanto nos seus inícios como no seu
desenvolvimento histórico, como se fosse uma religião radicalmente pacifista e inimiga,
por princípio, da vida militar.
13 LE GOFF, Jacques. São Luís. Biografia. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999, especialmente as
páginas 166-189.
14 COSTA, Ricardo da. “A conquista de Córdoba por Fernando III, o Santo”. In: LAUAND, Jean (org.).
Filosofia e Educação – Estudos 13. São Paulo: Editora SEMOrOc (Centro de Estudos Medievais Oriente &
Ocidente da Faculdade de Educação da USP) – Factash Editora, 2008, p. 07-18.
15 MARQUES, A. H. de Oliveira. Portugal na Crise dos séculos XIV e XV. Lisboa: Editorial Presença,
1987, particularmente as páginas 530-532.
16 AMSTALDEN, Constantino, MORAES, Antonio S. G. São Nicolau de Flüe: construtor da paz. São
Paulo: Gráfica Coletta, 1990.
17 FRANÇA ANDRADE, A. de. Cada dia tem seu santo. São Paulo: Artpress, 2000.
18 SANTOS, A. A. “Vida Militar e Santidade”. In: Jornal A Ordem, Porto, 12-12-2001, p. 8.
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IV. A paz e a guerra no pensamento de Santo Tomás de Aquino
Após esses esclarecimentos compreensivos iniciais, passamos à breve exposição do
pensamento tomista acerca da paz e da guerra. Santo Tomás, em sua Suma Teológica (IIIIae,
questão 29), trata da paz, que define, com Santo Agostinho, como a tranqüilidade da
ordem. Não é a mera ausência de guerra, mas a serenidade decorrente da reta ordenação
das coisas.
A questão 40 (II-IIae) é dedicada à guerra. Esta, segundo Santo Tomás, não é um mal em
si; ela pode ser boa – até santa – e também pode ser má. Tudo depende da finalidade a
que se ordena e depende, igualmente, do modo como é conduzida. Em suma, três são as
condições para a liceidade da guerra, expostas no art. 1 da referida questão 40:
1) Que seja declarada por um príncipe, ou seja, por uma autoridade pública
legítima, já que não compete ao particular declarar guerra, pois tem
superiores a quem recorrer para a salvaguarda de seus direitos;
2) Que sua causa seja justa, isto é, que seus inimigos realmente mereçam que
se lhes declare guerra;
3) Que haja reta intenção por parte dos combatentes, de modo que o bem seja
promovido e o mal evitado.
Por isso, lembra Tomás de Aquino as palavras de Santo Agostinho:
Apud veros Dei cultores, etiam illa bella pacata sunt, quae non cupiditate aut crudelitate,
sed pacis studi geruntur, ut mali coerceantur et boni subleventur.
Entre os verdadeiros adoradores de Deus, até as guerras são pacíficas, pois é o desejo da
paz que os move, e não a cobiça ou a crueldade, para que sejam freados os maus e
favorecidos os bons.19
O pensamento tomista nesse tema não é de todo original. Ele é, como dissemos, um
desdobramento, uma ampliação de idéias já expostas no século V por Agostinho, que já
indicara, em seu tempo, as condições para a legitimidade de uma guerra.
Tomás de Aquino também justifica a existência de ordens religiosas destinadas à luta
armada. É interessante acompanharmos sua argumentação, que surpreende pela
originalidade. Ele dedica quatro questões ao estudo da vida religiosa, in genere.
Na questão 186 (II-IIae da Suma Teológica), trata da natureza do estado religioso, que
consiste verdadeiramente num estado de perfeição, no qual os religiosos fazem a Deus a
oblação de suas pessoas, num ato que constitui como que um holocausto. O estado
19 De verbis Domin., De civitate Dei, l19, c. 12, apud II-IIae, q. 40, a. 1.
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religioso se ordena à perfeição da caridade e, essencialmente, é constituído pelos votos
de obediência, castidade e pobreza.
Por esse tríplice voto, o religioso sacrifica a Deus tudo quanto lhe pertence: seus bens
exteriores (pelo voto de pobreza), seu corpo (pelo voto de castidade) e sua própria
vontade (pelo de obediência). Dos três votos, o mais excelente é o de obediência,
porque a vontade humana é, de si, um bem mais valioso do que o corpo ou os bens
exteriores, e também porque o voto de obediência, de certa forma, contém os outros
dois. Pela virtude da religião, qualquer ato virtuoso ordenado ao serviço de Deus e para
a honra divina converte-se em ato religioso. Por isso, todos os atos bons realizados por
religiosos adquirem mérito e valor especiais, pela excelência da própria virtude de
religião.
Na questão 187, o Aquinate trata das coisas que são permitidas e proibidas aos
religiosos, e na 189 estuda as condições para o ingresso na vida religiosa. Essas duas
questões apresentavam, na época, não apenas um interesse puramente especulativo, mas
revestiam-se de atualidade bastante polêmica.20 Na questão 187, Aquino sustenta que é
lícito aos religiosos viverem de esmolas, não por ociosidade, mas para exercitarem a
virtude da humildade. E que lhes é lícito, igualmente, vestirem-se de modo mais pobre e
vil que o comum das pessoas. Com isso, ele defendia os franciscanos, atacados por
doutores da Sorbonne que criticavam o seu modo de vida.
A questão 188 é dedicada a uma ampla exposição sobre a diversidade de ordens
religiosas. Também essa questão era bastante polêmica em sua época, já que Santo
Tomás estava vivamente empenhado, naquela altura, nas aludidas disputas doutrinárias
contra doutores que se opunham às ordens mendicantes (franciscanos e dominicanos).
Em primeiro lugar, deve-se destacar que convinha, à beleza e ao esplendor da Igreja
Católica de então, que houvesse variedade nas formas de vida religiosa. Todas elas se
ordenavam à perfeição da caridade, que é o amor de Deus e do próximo. Por isso, era
conveniente que houvesse ordens dedicadas especificamente ao culto e ao louvor de
Deus – e estas são as ordens da vida contemplativa; e também convinha que houvesse, a
par delas, ordens dedicadas à vida ativa, para servirem ao próximo por amor de Deus.
Por isso, é lícito, por exemplo, constituírem-se ordens religiosas destinadas ao estudo e à
pregação, para a formação dos fiéis e sua defesa contra as heresias – este era bem o caso
dos dominicanos, também impugnados por doutores sorbonianos que viam, em seu
20 Em 1270, S. Tomás escreveu um opúsculo apologético intitulado Contra pestiferam doctrinam
retrahentium homines a religionis ingressu, inserida na polêmica travada, em companhia do franciscano São
Boaventura (1221-1274), contra os partidários de Guillaume de Saint-Amour (1202-1272) e Gérard
d’Abbeville (†1272), inimigos das então novas ordens mendicantes. Esse opúsculo, traduzido para o
francês, recebeu o nome de L’entrée en religion (Les Éditions du Cerf, Juvisy-Seine et-Oise, 1935).
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modo de vida, algo contrário à essência da vida religiosa como até então se entendera;
ainda aqui, o caráter polêmico da Suma Teológica é bem patente.
Quanto à liceidade de uma ordem religiosa ter como objetivo a vida militar, Santo
Tomás recorda o já citado ensinamento de Santo Agostinho, que rejeitou a afirmação de
que a vida militar é desagradável a Deus, lembrando que o rei Davi foi grande militar e
muito agradou ao Senhor. Tomás pondera que, se o fim das ordens religiosas é agradar a
Deus e a vida militar pode agradar a Deus, em princípio não há obstáculo a que se funde
uma ordem religiosa para a prática da milícia. A seguir, desenvolve mais largamente seu
pensamento:
Religio institui potest non solum ad opera contemplativae vitae, sed etiam ad opera vitae
activae, inquantum pertinent ad subventionem proximorum et obsequium Dei: non autem
inquantum pertinent ad aliquid mundanum tenendum. Potest autem officium militare
ordinare ad subventionem proximorum, non solum quantum ad privatas personas, sed
etiam quantum ad totius reipublicae defensionem: unde de Iuda Machabeo dicitur (I Mac.
3,2-3) quod “praeliabatur praelium Israel cum laetitia, et dilatavit gloriam populo suo”.
Ordinari etiam potest ad conservationem divini cultus: unde ibidem subditur Iudam
dixisse: “Nos pugnabimus pro animabus nostris et legibus nostris” (v. 2); et infra, 13,3,
dicit Simon: “Vos scitis quanta ego et fratres mei et domus patris mei fecimus pro legibus
et pro sanctis praelia”. Unde convenienter institui potest aliqua religio ad militandum, non
quidem propter aliquid mundanum, sed propter defensionem divini cultus et publicae
salutis; vel etiam pauperum et oppressorum, secundum illud Ps 81,4: “Eripite pauperem, et
egenum de manu peccatoris liberate”.
Pode-se fundar uma ordem dedicada não só às obras da vida contemplativa, mas também
às da vida ativa, naquilo que têm de serviço ao próximo e ao amor de Deus, e não no que
se referem a negócios humanos. Ora, o serviço militar pode se ordenar ao serviço do
próximo, e não só em ordem às pessoas privadas, mas também para a defesa de todo o
estado. Por isso se disse que Judas Macabeu “combateu com alegria nas batalhas de Israel e
aumentou a glória de seu povo”. Uma ordem pode, ademais, se ordenar à conservação do
culto divino, pelo que se lê, do mesmo Judas Macabeu: “Lutaremos por nossas vidas e
nossas leis”. E seu irmão Simão disse, por sua vez: “Sabeis quanto lutamos, eu e meus
irmãos e a casa de meu pai, por nossa lei e nossas coisas santas”. Logo, pode-se
convenientemente fundar uma ordem religiosa para a vida militar, não com um fim
mundano, mas para a defesa do culto divino, do bem público, ou dos pobres e oprimidos,
de acordo com o Salmo que diz “Salvai o pobre, livrai o indigente das mãos do pecador”.21
Qualquer obra de misericórdia poderia servir de elemento material para a constituição
de uma ordem religiosa nova, desde que lhe fornecesse o elemento formal a chancela da
Igreja – pela aprovação de sua regra.22 Ora, defender os peregrinos e os fiéis em geral
21 II-IIae, qu. 188.
22 Essa é a síntese do pensamento tomista a respeito, formulado adequadamente por um teólogo do
século passado, Mons. Paul Philippe (Secretário da Sagrada Congregação dos Religiosos): “De modo
geral, escreve Santo Tomás, ‘não existe obra de misericórdia em vista da qual não se possa instituir uma
Ordem religiosa, mesmo se esta ainda não tiver sido fundada’ (Nec est aliquod opus misericordiae ad cujus
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contra os que se opunham a seus atos de piedade e à prática da sua religião era, sem
dúvida, uma obra de misericórdia, e podia perfeitamente servir de elemento material
para a constituição de ordens religiosas. Esse é o argumento original e determinante de
Santo Tomás a respeito das ordens militares.
V. Conclusão
Alicerçada em uma sólida base bíblica e fundamentada na tradição dos mártires da Igreja
– ela própria construída no “sangue de seus mártires” – a guerra nunca foi um tema
estranho ao pensamento medieval católico. Em mais de uma oportunidade neste
pequeno trabalho, nós salientamos que Santo Tomás de Aquino confirmou a tradição a
esse respeito, firmada desde, pelo menos, Santo Agostinho. Pelo contrário, a Idade
Média venerou profundamente os seus guerreiros, talvez mais até que seus santos
“intelectuais”.
Por exemplo, e à guisa de conclusão, o poeta Dante Alighieri (1265-1321), em sua Divina
Comédia – opera omnia do pensamento medieval – alçou aqueles que morreram
defendendo a fé cristã ao quinto céu de seu Paraíso, o céu de Marte, enquanto no quarto, o
céu do Sol, estão duas coroas, com vinte e quatro espíritos beatos.23
No quinto céu, céu de Marte, residem eternamente os espíritos que combateram e
defenderam a verdadeira fé, junto aos seus mártires. Ali ergue-se uma cruz muito
luminosa e incandescente, com uma imagem de Cristo. Ao Seu redor, esses espíritos
iluminados de guerreiros e mártires da fé se movem incessantemente, ao som de um
canto que exalta Cristo e enleva Dante em contemplação, pois repete sem cessar
“Ressuscitei e Venci” (Resurgi et Vinci). Com o louvor aos guerreiros da Divina Comédia,
portanto, concluímos este opúsculo: os medievais amaram os seus guerreiros.
Qui vince la memoria mia lo ‘ngegno; E aqui, à memória o engenho meu consigno,
ché quella croce lampeggiava Cristo, que nessa cruz resplandecia Cristo,
sí ch’io non so trovare essempro degno; tal que exemplo não sei achar condigno;
ma chi prende sua croce e segue Cristo, mas quem pegar sua cruz e seguir Cristo
ancor mi scuserà di quel ch’io lasso, ainda me perdoará esta escassez
vedendo in quell’ albor balenar Cristo. quando vir em tal luz lampejar Cristo.
executionem religio institui non possit, etsi non sit hactenus instituta – Contra impugnantes Dei cultum, c. 1)”, Les fins
de la vie religieuse selon Saint Thomas d’Aquin. Atenas: Éd. de la Fraternité de la Très-Sainte Vierge Marie, p.
88.
23 Na primeira, Tomás de Aquino, Alberto Magno, Graciano, Pedro Lombardo, o rei Salomão,
Dionísio Pseudo-Areopagita, Paulo Orósio, Boécio, Isidoro de Sevilha, Beda, o Venerável, Ricardo de São
Vítor e Siger de Brabante; na segunda, São Boaventura, o Iluminado e Agostinho (primeiros discípulos
de São Francisco), Hugo de São Vítor, Pedro Comestor, Pedro Hispano, o profeta Natam, São João
Crisóstomo, Santo Anselmo, Donato, Rábano Mauro e Joaquim de Fiore.
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Di corno in corno e tra la cima e’l basso De braço a braço, e da cabeça aos pés
si movien lumi, scintillando forte moviam-se os lumes, cintilando mais,
nel congiugnersi insieme e nel trapasso: no encontro e na passagem, cada vez;
cosí si veggion qui diritte e tòrte, assim vemos aqui, vários e iguais,
veloci e tarde, rinovando vista, prontos e tardos, que um sopro indispõe,
le minuzie d’i corpi, lungue e corte, grãos de matérias infinitesimais
moversi per lo raggio onde si lista mover-se pela réstia que transpõe
talvolta l’ombra che, per su difesa, acaso a sombra que na sua morada
la gente con ingegno e arte acquista. a gente com engenho e arte dispõe.24
Imagem 2
A cruz dos que defenderam a fé cristã pelas armas. Gustave Doré (1832-1883). Divina
Comédia, Paraíso, Canto XIV, vv. 104-105. Nesta delicadíssima composição em bico de
pena, repare na profusão dos espíritos dos guerreiros e mártires ao redor da cruz, em
forma de anjos (exatamente como no poema de Dante), além da aura de Beatriz e a atitude
de reverência e contemplação de Dante, ajoelhado.
24 DANTE ALIGUIERI. A Divina Comédia. Paraíso (trad. e notas de Eugenio Mauro). São Paulo: Ed.
34, 1998, p. 105.
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