MAGISTÉRIO
ORDINÁRIO, O GRANDE DESCONHECIDO
ARNALDO XAVIER DA SILVEIRA
II – O caráter
orgânico do Magistério ordinário
Breve ensaio,
com vistas a futura análise do Vaticano II
São Paulo escreveu: "a fé vem pela audição, a audição
pela pregação de Cristo". — O Magistério ordinário é o do dia-a-dia.
Abarca tudo que os bispos ensinam, diretamente ou pelos que têm sua aprovação:
doutores, pregadores, leigos. Ora escrito, em geral falado, está na Igreja
toda, sempre orgânico, fecundo, cheio de vida. ― Jesus pregou pela palavra; o
que escreveu, na areia, o vento apagou.
ÍNDICE
Capítulo
I − Interpretações
equivocadas do Vaticano II – itens 1-3
Capítulo II – A
natureza orgânica do Magistério ordinário – item
4
II.1
- Trata-se de um Magistério orgânico e cheio de vida –
itens 5-15
II.2 - Os sete
sentidos em que o Magistério ordinário é orgânico – item 16
II.3 -
O ensinamento verbal de Cristo segundo Santo Tomás – itens 17-23
II.4
- "Fides ex auditu, auditus autem
per verbum Christi" – itens 24-29
II.5
- Magistério ordinário e a formação da mentalidade católica – itens 30-39
II.6
- “Sensus
fidelium”, senso católico, sentir
com a Igreja – itens 40-44
II.7 -
Teologia dogmática ou poesia devota? – itens 45-49
Capítulo
III – Desenvolvendo a doutrina do Magistério ordinário orgânico
– itens 50-52
III.1 - A doutrina
clássica sobre o Magistério ordinário – item 53
III.2 - Encíclica Mystici Corporis Christi – item 54
III.3 - O “orgânico”,
da biologia à metafísica e à teologia trinitária – item 55
III.4
- Hierarquia e fieis – item 56
III.5
- Doutrinas que a hierarquia aprova – item 57
III.6 - Aprovação
tácita – item 58
III.7 - Cardeal
Newman e o arianismo no século IV – item 59
III.8 - Bento XVI e as crianças de tempos passados – item 60
III.9
- O “senso cristão” no ensino do Pe. Balić – item 61
III.10
- Gramsci, Santo Tomás e o lenhador católico – item 62
III.11
- Santo Tomás e a estética medieval em De Bruyne – item 63
III.12 -
Uma página de Mons. Vacant pouco divulgada – item 64
III.13
- Erros no Magistério ordinário – item 65
III.14
- Cristo não dotou a Igreja de uma infalibilidade omnímoda e absoluta – item 66
III.15 - “Minor sed sanior pars” – item 67
III.16 -
Magistério extraordinário papal e organicidade – item 68
III.17
- O Vaticano II e o Magistério ordinário orgânico – item 69
Capítulo
IV – Síntese e conclusão – itens 70 a
72
Capítulo
I - Interpretações
equivocadas do Vaticano II
1) A
conceituação de Magistério extraordinário papal e conciliar é hoje corrente e
inquestionada entre os verdadeiros católicos. A noção de Magistério ordinário,
entretanto, não é tão clara e difundida. Há a respeito dela graves e
surpreendentes confusões, mesmo entre teólogos categorizados.
2) Vem sendo admitida, por estudiosos do assunto, a
possibilidade de um pronunciamento singular infalível do Magistério ordinário
papal ou conciliar. — Não poucos
defendem a infalibilidade do Vaticano II. — Há quem repute que o Vaticano II é
infalível ainda que Paulo VI tenha declarado que nele não houve nenhuma definição
de caráter extraordinário. — Chega-se a dizer que um Concilio ecumênico seria
infalível mesmo contra a vontade expressa do Sumo Pontífice e dos Bispos a ele
presentes. — Outros ainda sustentam que os ensinamentos não infalíveis de um
Concílio, como os do Papa, devem ser acolhidos, ao final das contas, como se
fossem igualmente infalíveis.
3) Essas
e outras concepções equivocadas sobre o Vaticano II, algumas delas até mesmo
esdrúxulas, exigiriam um estudo analítico cuidadoso, que nos propomos a fazer
oportunamente. Desde já, entretanto, desejamos enunciar alguns princípios, que
julgamos fundamentais para a exata conceituação do Magistério ordinário,
“orgânico e cheio de vida”. Entendemos que à luz desses princípios deve ser
feita uma avaliação séria do Vaticano II.
Capítulo II –
A natureza orgânica do Magistério ordinário
4) Na Sagrada Escritura, nos documentos papais e
conciliares, nos escritos e tratados da segunda
escolástica e da neo-escolástica, julgamos haver tesouros pouco
explorados sobre a verdadeira noção do Magistério ordinário, em especial sobre
sua natureza orgânica, os quais não podem permanecer escondidos.
É por isso que entendemos que o Magistério ordinário é hoje um desconhecido. E,
nesse ramo da Sagrada Teologia, o grande desconhecido.
II.1 -
Trata-se de um Magistério orgânico e cheio de vida
5) Seria
errônea uma concepção mecânica e simplista desse Magistério ordinário, como se
fosse ensino de física ou matemática. Na Santa Igreja, o que se transmite é uma
doutrina revelada pelas Sagradas Escrituras e pessoalmente por Nosso Senhor,
bem como pelos apóstolos, e que passou, de modo vivo e orgânico, de geração em
geração, até nossos dias, sob o influxo da graça. Aí
estão a Bíblia e a Tradição, que constituem as fontes da Revelação. É aí
de fundamental importância o caráter orgânico desse patrimônio doutrinário
revelado, em que tudo se compõe com tudo, em que as partes se encaixam umas nas
outras com admirável coerência, constituindo um grandioso corpo de verdades, de
princípios, de regras, que transcende a limitação humana.
6)
Etimologicamente, a palavra “orgânico” provém da noção do órgão vivo, por
oposição ao que é mecânico, maquinal, morto. Nos dicionários consta mesmo que
"orgânico" diz respeito à "constituição íntima e fundamental da
coisa", ao que está nela "profundamente arraigado", sempre se
contrapondo ao que é superficial, automático, inerte, cego, sem vida.
7) A
organicidade envolve sempre a ideia de ordem, de harmonia, de vida visível ou
latente advinda da própria natureza da coisa, de movimento silencioso e eficiente
para a consecução de um fim. "Organismo", que indica um conjunto de
órgãos vivendo e exercendo suas funções num todo maior, exprime essas ideias de
modo mais pleno e perfeito. O analogado primário das noções de “órgão”, de
“orgânico”, é evidentemente o órgão biológico, mas o analogado secundário
aplicável à vida social, quando se fala em “sociedade orgânica”, é para nós,
homens, mais rico e expressivo, levando nosso espírito a uma admirável
sublimação daquelas noções. — É o mesmo que acontece, por exemplo, com a ideia
de “corrupção”, que tem seu analogado primário na coisa material que se
putrefaz, da qual a palavra nasce, mas que para nós homens é mais rica, forte,
expressiva, sugestiva, quando aplicada ao homem corrupto, ao grupo social
corrupto, à sociedade corrupta. — É que nós, imersos no universo material, do
qual haurimos nossos conceitos, somos também e sobretudo seres espirituais, e é
tratando das coisas do espírito que melhor penetramos na ordem do ser e a
compreendemos. — Em futuro estudo neste site, é nossa intenção aprofundar a
noção de organicidade, perquirindo sobre sua metafísica e sua teologia, o que
nos levará até seu exemplar supremo, que está nas relações trinitárias.
8) A noção de
organicidade está presente, e com extraordinário brilho,
na distinção que Pio XII faz entre povo e massa, em sua radiomensagem de
Natal de 1944: “Povo
e multidão amorfa, ou como se pode dizer ‘massa’, são dois conceitos diversos.
(...) O povo vive e se move com vida
própria. A massa é por si mesma inerte, e não pode receber movimento senão de
fora. O povo vive da plenitude da vida dos homens que o compõem, cada um dos
quais em seu próprio posto e à sua maneira, é pessoa consciente de suas
próprias responsabilidades e suas próprias convicções. A massa pelo contrário
espera impulso de fora. (...) Joguete
fácil nas mãos de um qualquer que explore seus instintos e impressões, disposta
a seguir cada vez uma, hoje esta, amanhã aquela outra bandeira”.
9) O Magistério ordinário da Igreja é "orgânico", uma vez que
não é livresco, não visa à erudição vazia ou a um academicismo oco e
narcisista, nem a uma moral fria, arbitrária, despótica, mas suscita o senso do
maravilhoso de que falava Aristóteles quanto à filosofia. Suscita a alegria, o
enlevo, a dedicação, até o martírio, diante da grandeza infinita de Deus e da
ordem sobrenatural. Leva ao entusiasmo, ao apostolado, à coragem de enfrentar a
vida, de explorar, de empreender, por oposição ao déjà vu, à tristeza profunda e estiolada do espírito moderno, dos
que julgam que a vida não tem sentido algum, e que por isso mergulham nos
prazeres mais baixos. Leva à contemplação, à humildade, à abertura da alma a
tudo quanto é grande, elevado, transcendente. Alimenta a iniciativa, a vida
própria, ensinando e animando o fiel a não esperar a ordem do superior ou o
estímulo externo para empreender. Isso é o Magistério ordinário, orgânico e
cheio de vida.
10) Em outro estudo nesta nossa série
sobre O Magistério Ordinário, o Grande
Desconhecido, pretendemos mostrar que o Magistério propriamente dito, que
goza das promessas específicas de Nosso Senhor, é apenas o hierárquico,
constituído pelo Papa e Bispos; mas estes também ensinam pela voz daqueles que
eles aprovam expressa ou implicitamente. É assim que as lições de Santo Tomás de
Aquino, por exemplo, integram inquestionavelmente os ensinamentos oficiais da
Igreja, aprovados e recomendados que foram por dezenas de Papas.
11) A noção do caráter orgânico do
pensamento católico, e portanto do Magistério da Igreja, está clara na seguinte
página da Encíclica Humani generis,
de Pio XII, de 12 de agosto de 1950: "Qualquer
verdade que a mente humana, procurando com retidão, descobre, não pode estar em
contradição com outra verdade já alcançada, pois Deus, verdade suprema, criou e
rege a humana inteligência, de tal modo que não opõe cada dia novas verdades às
já adquiridas, mas, apartados os erros que porventura se tiverem introduzido, edifica a verdade sobre a verdade, de
forma tão ordenada e orgânica como vemos estar constituída a própria natureza
da qual se extrai a verdade. Por esse motivo o cristão, seja filósofo,
seja teólogo, não abraça apressada e levianamente qualquer novidade que no
decurso do tempo se proponha, mas deve sopesá-la com suma diligência e
submetê-la a justo exame a fim de que
não venha perder a verdade já adquirida ou a corrompa, com grave perigo
e detrimento da mesma fé" — Note-se que esse texto afirma tanto o
caráter orgânico da doutrina católica no seu sentido mais amplo, quanto das
verdades que são descobertas, e da própria natureza objeto do estudo. Assim, a
organicidade está na transmissão da verdade pelo Magistério, como está em tudo:
na doutrina, no objeto do ensino, nas descobertas novas.
12) Nosso
Senhor pregou pela palavra. Quando escreveu, foi na areia. E pregou também pelo
exemplo, por atos e atitudes, que na transmissão da verdade revelada
frequentemente se apresentam como meio mais pleno e eficiente do que a palavra
escrita ou falada. Numerosos dentre seus atos atravessaram os séculos como
modelos perpétuos de seus ensinamentos, balizas e faróis imperecíveis para o
fiel comum e para a civilização cristã. Nasceu numa manjedoura. Permitiu que
Nossa Senhora e São José o perdessem no Templo. Teve trinta anos de vida oculta
numa casa humilde de Nazaré. Transformou água e vinho. Multiplicou pães e
peixes. Pediu que viessem a si os pequeninos. Falou por parábolas. Na Paixão,
as palavras que disse e os atos havidos marcaram a vida cristã. Os fatos que o
cercaram têm um simbolismo que supera as dimensões humanas. Tudo o que fez não caberia em livros.
13) A pregação
dos apóstolos foi sem dúvida acompanhada por escritos numerosos, mas seus
ensinamentos foram muito além daquilo que redigiram. É a Tradição Apostólica,
que ao longo dos séculos vem sendo explicitada pela Igreja nas condições novas
que as diversas eras trazem. E essa explicitação nada tem de nova revelação,
mas constitui sempre novos modos de apresentar aquilo que foi revelado: "nove, non nova", isto é, "de
modo novo, não coisas novas".
14) A natureza
viva e orgânica do ensino está prototipicamente caracterizada na educação
familiar. É sobretudo pelos exemplos dados em casa,
pelo clima do lar, pelas atitudes importantes e pelas mais simples dos pais,
pelo sorriso de aprovação da mãe, pela repreensão dura como pela censura
leve, às vezes presente num simples olhar, é com tudo isso que se forma o
espírito da criança. Sem dúvida a mãe lhe ensinará o Catecismo e, quando mais
crescida, lhe dará um artigo de jornal, um ou outro livro para ler, mas o centro da educação familiar que, em tempos de
verdadeira civilização cristã, marca a formação do filho, está nessa escola doméstica da vida quotidiana, que
substancialmente, no seu todo como em seus pontos particulares, a Hierarquia
aprova ao longo dos anos, das décadas, dos séculos, quer explícita, quer
implicitamente.
15) Numa
civilização católica, os professores dos níveis fundamentais exercem influência
indelével sobre o espírito do jovem. No ensino medieval, isso valia igualmente
para o ensino superior, marcado pela figura pessoal do mestre. Hoje, com o
ensino livresco, à distancia, impessoal, controlado de forma mecânica e
estatística pela burocracia dos Ministérios da
Educação, tende a desaparecer o grande professor, de inspiração maior e
lendário, ficando o técnico, o repetidor, sem o caráter transcendente do grande
mestre que, ao lado de outras figuras eminentes da sociedade, modelava as
mentalidades, definia as regionalidades, formava as nacionalidades.
II.2 - Os sete sentidos em que o Magistério
ordinário é orgânico
16) Pelo
exposto torna-se claro que o Magistério ordinário da Igreja é profundamente
orgânico em tudo, em si mesmo e em todas as suas manifestações. Com efeito:
a) é orgânico
em todo o seu objeto: primeiramente em seu objeto último, que é a Verdade
subsistente, insuscetível de ser expressa apenas por palavras humanas; é
orgânico enquanto tem também por objeto toda a Revelação; é orgânico naquilo
que ensina sobre a natureza criada, a qual é também orgânica, conforme ensina
Pio XII;
b) é orgânico
em sua expressão, que deve recorrer a pregações vivas, imagens, símbolos,
cerimônias;
c) é orgânico
no modo como transmite a verdade revelada, o que se faz sobretudo ex auditu, no dizer de São Paulo, isto
é, pela palavra, pela pregação, por tudo quanto há de vivo e inefável na ação
do mestre sobre o fiel;
d) é orgânico
no explicitar a doutrina revelada, sobrepondo verdade sobre verdade, com ordem,
coerência e sabedoria profundas, sem rupturas que dilacerariam o depósito da
Revelação;
e) é orgânico
na sua forma de atuação, com o Papa hierarquicamente acima dos Bispos, e estes,
pelo mundo todo, ensinando pessoalmente e também pelos pregadores, doutores e
fieis que têm sua aprovação expressa ou tácita;
f) é orgânico
no modo vivo pelo qual seus ensinamentos são recebidos e assimilados pelos
fieis, inspirando-os até o mais fundo de suas almas, e se difundem por toda a
Igreja, num borbulhar de dedicações que facilmente chegam até o martírio;
g) e é
orgânico, talvez de modo mais eminente do que tudo quanto ficou indicado acima,
pela vida da graça que sempre o acompanha.
II.3 - O ensinamento verbal de Cristo segundo Santo
Tomás
17) As noções da organicidade do Magistério ordinário em seu objeto,
em sua expressão e na forma de sua transmissão, conforme acaba de ser assinalado,
vêm expostas de modo lapidar na resposta de Santo Tomás de Aquino, na Summa Theologica, III, q. 42, a. 4, à
seguinte questão: "se Cristo
deveria transmitir sua doutrina por escrito".
|
18) A primeira
razão por ele dada para justificar que "nenhum livro escrito por Cristo conste no cânon das Escrituras"
é que "aos maiores dentre os
doutores cabe o modo mais excelente de ensinar, e por isso a Cristo, como
doutor supremo, cabia ensinar imprimindo sua doutrina nos corações dos ouvintes".
19) A segunda
razão está na "excelência da
doutrina de Cristo, que não pode se esgotar em palavras escritas". E
Santo Tomás cita, nesse sentido, a passagem em que Santo Agostinho diz (Tract.
124 in Ioan. Ev.)
que os ensinamentos de Nosso Senhor "não
poderiam ser abarcados compreensivamente pela capacidade dos leitores".
20) A terceira
razão é "para que a doutrina dele
chegasse a todos em determinada ordem, isto é, ele ensinou imediatamente a seus
discípulos, os quais posteriormente ensinaram aos outros pela palavra oral ou
escrita". E Santo Tomás invoca Prov. 9, 3, onde se lê que a Sabedoria
"mandou suas ancilas convocarem os
soldados para a fortaleza".
21) Objetando
contra o que defende, Santo Tomás argui que, como na Lei Velha, parece que
Cristo deveria ter ensinado por escrito. E responde, citando São Paulo, que a
"lei do Espírito de vida" (Rom. 8, 2)
"não
deveria ser escrita com tinta, mas pelo Espírito de Deus vivo, não em tábuas de
pedra, mas nas tábuas de carne do coração do homem" (II Cor. 3, 3).
22) Objeta ainda
que, se tivesse escrito, Nosso Senhor poderia ter afastado muitas ocasiões para
o erro, e assim tornado mais claro o caminho da fé. E responde: "os que não querem crer nos escritos dos
Apóstolos, também não creriam no que Cristo escrevesse".
23)
A seguir, comentando essas noções do Doutor Angélico, procuraremos
ressaltar que a palavra escrita é incapaz de dizer tudo, especialmente nas
coisas da ordem sobrenatural. Que a palavra oral tem igualmente suas
limitações, impondo-se assim ensinar também por atos, gestos, atitudes,
silêncios, símbolos, imagens, pelas artes, pois esses caminhos podem muitas
vezes levar melhor à intelecção dos imponderáveis, do sublime, do
transcendente. Que o ensino oral é, em matéria de fé, superior ao escrito. Que
uma mentalidade verdadeiramente católica, o sensus
fidelium, o sentir com a Igreja de Santo Inácio
de Loyola, mais valem que a erudição na ciência teológica. Que Deus quer
salvar o homem pelo homem, mandando suas ancilas convocarem os soldados,
verdade essa essencial para bem entender o Magistério ordinário e o âmago de
sua conceituação.
II.4 - "Fides
ex auditu, auditus autem per verbum Christi"
24)
Esse ensinamento de São Paulo revela o caráter eminentemente orgânico da
transmissão da doutrina pelo Magistério ordinário. – A tradução do texto
apresenta alguma dificuldade. — Literalmente, o sentido é “a fé vem pela audição, a audição pela pregação de Cristo”. — Várias traduções correntes se valem de
perífrases, como “a pregação vem pela audição, e é a pregação da palavra de
Cristo”, ou “a fé depende da pregação, e a pregação é o anúncio da palavra de
Cristo”, ou “a fé vem pelo que é ouvido, e o que é ouvido vem pela palavra de
Cristo”. — Há quem, num sentido
extensivo mas verdadeiro, aplique a frase à música, que pode levar às almas a
doutrina de Cristo, especialmente se forem valorizados o canto gregoriano e o
polifônico. — E há quem, com inspiração manifestamente protestante, abuse da
liberdade de traduzir: “propaganda first, faith after”, “primeiro a propaganda,
depois a fé”, aplicando o princípio às teorias de marketing, ou pelo menos do
"marketing da fé", como algumas igrejas evangélicas o entendem.
25) Na
verdade a questão da tradução não impede nem dificulta a intelecção plena do
texto de São Paulo. Ele diz que a fé vem sobretudo pela audição, e não pela
visão de fatos relacionados com a fé, como milagres, nem pela leitura, mesmo
dos textos sagrados, nem pelos outros sentidos, que ademais são manifestamente
menos cognitivos do que a visão e a audição.
26) É
certo que a visão, o mais cognitivo dos sentidos, desempenha papel importante
para que o fiel chegue à fé, mas o que Santo Tomás afirma, em C. Gent., IV, cap. I,
é que "a verdade divina, que vai
além do intelecto humano, desce até nós por revelação, não como verdade
demonstrada a ser vista, mas como verdade dita a ser crida"; e logo a
seguir ele repete: "as coisas
divinas a serem por nós cridas nos são reveladas pela locução", e
assim "a verdade revelada sobre as
coisas divinas nos é proposta não para ser vista, mas para ser crida". Também os demais sentidos estão
presentes na Sagrada Escritura e na Tradição como tendo sua missão em relação
ao ato de fé. O corpo de Lázaro já cheirava mal. Madalena ungiu Nosso Senhor
com perfumes. Foi pelo sabor que, em Caná, o mordomo notou tratar-se de bom
vinho (“C. Gent.”, lib. IV, cap. I). Nosso
Senhor mandou que São Tiago apalpasse as chagas (Jo. 20, 28.). E muita coisa
mais, que alimenta a pregação católica ao longo dos séculos.
27) O
significado da norma excede a questão estrita dos cinco sentidos. O bom falar
vem, como regra geral, acompanhado de gestos, de expressões faciais, de
silêncios significativos, de comunicação do calor humano, de convites
implícitos a isto ou àquilo, enfim de um sem-número de imponderáveis que com
frequência dizem mais que as próprias palavras. Ou pelo menos as completam de
forma extraordinária. A boa conversa, e sobretudo a pregação da verdadeira
religião, tendem a transmitir uma mentalidade, a modelar o espírito do ouvinte,
a movê-lo para o reto caminho. Inspiram em sua alma o sensus fidelium, o senso católico, o sentir com a Igreja de Santo
Inácio de Loyola. ― É o apostolado, hoje quase proscrito sob a alegação dita
ecumênica de que todas as religiões são boas e levam à salvação.
28) O “fides ex auditu” atende ao desígnio
expresso de Nosso Senhor, de que o homem seja salvo pelo homem. Toda a ordem da
redenção invoca essa disposição da divina Providência. ― Santo Tomás explica
que a fé, como virtude teologal, vem só de Deus. Mas, diz ele, "é necessário para a fé que as verdades a
serem cridas sejam propostas a quem crê. E isso se faz pelo homem, pois 'fides
est ex auditu', bem como, e principalmente, pelos anjos" (Sum. Th. I, q. 111, a. 1, ad 1).
― O aprofundamento desse princípio excederia o escopo destas notas, envolvendo
não apenas considerações de natureza dogmática sobre o caráter orgânico e
predominantemente auricular do Magistério ordinário, mas também de natureza
moral, ascética e mística.
29) Desde já, contudo, cabe uma palavra sobre essa afirmação de
Santo Tomás, que pode parecer estranha, de que as verdades da fé são propostas
pelos homens “e principalmente pelos
anjos”. No corpo do mesmo artigo, explica ele que, “pela ordem da divina providência, os inferiores devem submeter-se aos
atos dos superiores [...]; e, como os
anjos inferiores são iluminados pelos superiores, assim os homens, inferiores
aos anjos, são por estes iluminados”. É essa uma das regras primeiras da
metafísica e da teologia da organicidade, aqui complementada pela metáfora
bíblica, de que a iluminação de Deus e dos anjos é recebida sobretudo pela
audição: “falai, Senhor, que o vosso
servo escuta” (1 Reg. 3,10), “ouvirei o que o Senhor me dirá” (Ps. 84, 9). Assim, a Imitação de Cristo, num arroubo místico,
exclama: “bem-aventurada a alma que ouve
o Senhor que lhe fala [...]; bem-aventurados
os ouvidos que acolhem o mais íntimo do sussurro divino [...]; plenamente bem-aventurados os ouvidos que
não escutam a voz que berra de fora, mas a de dentro, que ensina a verdade”
(III, caps. I e II).
II.5 - Magistério ordinário e a formação da
mentalidade católica
30) Já
aludimos levemente ao fato de que a troca de ideias oral, a conversa sobre
temas religiosos, mais ainda a pregação da verdadeira religião, e acima disso o
ensinamento magisterial vivo, tendem possantemente a transmitir uma mentalidade, a modelar o
espírito do ouvinte, a movê-lo a fixar-se em definitivo no reto caminho,
criando nele sólidos hábitos de virtudes.
31) O
que é a mentalidade? ― A
palavra “mentalité” só aparece na
língua francesa no século XIX. Segundo os dicionários, e no seu sentido mais
pobre, é a mente, a qualidade do que é mental, a capacidade intelectiva, o
pensamento. — Num sentido já um pouco mais rico, é o conjunto dos hábitos
intelectuais e psíquicos de um indivíduo ou de um grupo, é a maneira individual
de pensar e de julgar, é o estado mental ou psicológico da pessoa. — Essas
expressões entretanto não dizem tudo. Em seu sentido pleno, que aqui adotamos,
a mentalidade indica a visão do mundo, a Weltanschauung,
o fundo mais íntimo do posicionamento da personalidade perante as coisas, sua
concepção última sobre a natureza, o universo, a
criação, enfim sobre Deus, incluindo essencialmente as regras fundamentais
de procedimento que a pessoa adota na vida.
32) A noção de que
o Magistério da Igreja não deve apenas ensinar a doutrina, mas, numa concepção
orgânica do ensino, deve educar e formar de modo pleno e total a personalidade
e a mentalidade do fiel, ressalta com particular ênfase na Encíclica Divini Illius Magistri, de Pio XI: “a educação cristã abraça toda a extensão da
vida humana, sensível, espiritual, intelectual e moral, individual, doméstica e
social, não para diminuí-la de qualquer maneira, mas para a elevar, regular e
aperfeiçoar segundo os exemplos e doutrina de Cristo”.
33) A
seguir, na mesma Encíclica, Pio XI caracteriza o “verdadeiro e completo homem de caráter”, formado pelo Magistério da
Igreja, como sendo “o homem sobrenatural
que pensa, julga e opera constante e coerentemente segundo a sã razão iluminada
pela luz sobrenatural dos exemplos e doutrina de Cristo (...), pois não é qualquer coerência e rigidez de
procedimento, segundo princípios subjetivos, o que constitui o verdadeiro caráter,
mas tão somente a constância em seguir os eternos princípios da justiça”.
34) E Pio XI, citando a Encíclica
“Militantis Ecclesiae”, de Leão XIII,
escreve que “é mister (...) que não só em determinadas horas se ensine
aos jovens a religião, mas que toda a demais formação respire a fragrância da piedade cristã, porque, se isto
falta, se este hálito sagrado
não penetra e aquece os ânimos dos mestres e dos discípulos, muito pouca
utilidade se poderá tirar de qualquer
doutrina; pelo contrário, virão daí danos, e não pequenos”.
35)
Cumpre sublinhar, nesta última citação, as palavras “respirar a fragrância da piedade cristã”, densas de conotação
orgânica, uma vez que apontam para o caráter vivo, nada livresco, da formação
católica. E também, no mesmo sentido, a passagem que declara a “muito pouca utilidade (...) de qualquer doutrina” que venha
desacompanhada da mesma fragrância da piedade cristã. Dessa falta, advirão “danos, e não pequenos”.
36)
Postula um comentário, igualmente, a frase em que Leão XIII e Pio XI declaram
que o “hálito sagrado” da educação
cristã deve penetrar nos ânimos dos mestres e dos discípulos, e “aquecê-los”.
— Não se referem eles, portanto, apenas aos alunos, mas também aos professores,
pois não há verdadeira educação católica se os docentes não souberem exercer
seu magistério organicamente. — A palavra “aquecê-los” remete a noções correntes,
como as de “calor humano”, “calor de alma”. Calor significa metaforicamente
atividade, vivacidade, ardor, entusiasmo, zelo, sem os quais não há educação
cristã. E sem isso igualmente não há Magistério ordinário orgânico, nem,
portanto, Magistério ordinário pujante e verdadeiro. E dizemos isso em termos
de teologia dogmática, não apenas ascético-mística.
37) O
filósofo marxista Gramsci dizia que o “mal” da Igreja Católica, e ao mesmo tempo a sua força, estão em que todos os seus
membros, de Santo Tomás de Aquino ao fiel mais simples, pensam da mesma
maneira. Em termos mais precisos, não se trata apenas de pensar da mesma
maneira, mas de ter a mesma mentalidade, a mesma Weltanschauung, a mesma visão do mundo, de modo tal que o fundo da
alma e da mente do fiel é formado, é conformado, é moldado segundo a verdade
revelada por Nosso Senhor.
38)
Descaberia aqui uma defesa dessa unidade de pensamento e de mentalidade que
caracteriza os católicos. Não é para os fiéis, aos quais nos dirigimos, que
haveremos de provar que tal característica dos católicos não viola a liberdade
dos filhos de Deus, nem envolve “lavagem cerebral”, mas advém da submissão
racional, lúcida, consciente, inspirada pela graça, à divina Revelação.
39) Seguir, pois, o ensinamento tradicional do Magistério em vez
das novidades de hoje, não é, como dizem alguns, adotar um “livre exame” protestante, que escolhe aquilo que
quer crer, mas é ser fiel à continuidade orgânica do Magistério. A fidelidade à
Tradição não nasce de um livre exame mas, pelo contrário, da submissão da
inteligência e da vontade ao que foi revelado por Nosso Senhor, a Verdade única
e subsistente, e ensinado ao longo dos séculos pelo Magistério perene da
Igreja.
II.6 - “Sensus
fidelium”, senso católico, sentir
com a Igreja
40) A
pregação pela palavra, a presença viva do Magistério ordinário orgânico junto
ao fiel, do mais simples ao mais erudito, criam neste um novo
"sentido", ou novos “sentidos”, pelos quais suas reações diante dos
acontecimentos refletem profunda e espontaneamente suas convicções religiosas e
morais. São hábitos arraigados no âmago da alma, pelos quais o fiel "sente"
com Nosso Senhor. Torna-se, com a graça, um “alter Christus”. Surgem assim os conceitos de sensus fidelium, de senso católico, de sentir com a Igreja, cada um
dos quais merece uma análise cuidadosa.
41) O sensus fidelium acentua sobretudo o
sentido da fé. Assim, sobre a crise ariana, o Cardeal Newman escreveu que “o dogma de Nicéia se manteve durante a maior
parte do século IV, não pela firmeza inquebrantável da Santa Sé, dos Concílios
e dos Bispos, mas pelo consenso dos
fiéis” (vide item n.º 59, adiante).
42) O senso católico tem alcance mais amplo,
conotando não apenas as ações e atitudes da pessoa perante a fé, mas em face de
tudo que diz respeito à Igreja e à salvação das almas. Corresponde ao “espírito católico”, ao “bom espírito”, que devem estar presentes
na vida quotidiana, no modo de comportar-se, de pensar, de trabalhar, de
relacionar-se com outrem, em tudo enfim. O católico deve ser outro Cristo.
Segundo um velho dito de Santo Agostinho, talvez mais místico de que ascético,
"Deus intimior intimo meo",
"Deus me é mais íntimo do que o meu
íntimo"
(Confissões, liv. 3, cap. 6).
43) O sentir com a Igreja, de que fala Santo
Inácio de Loyola, representa a fina ponta do querer e deixar-se modelar pela
fé. Não é só pensar, mas “sentir”. Os
Exercícios Espirituais propõem dezoito regras que devem ser guardadas “para o verdadeiro sentido que devemos ter na
Igreja militante”. A primeira regra é que, “deposto todo o juízo próprio, devemos ter o espírito preparado e pronto
para obedecer em tudo à verdadeira Esposa de Cristo, nosso Senhor, que é a
nossa mãe, a Igreja hierárquica”. Devemos louvar a confissão ao sacerdote,
a recepção do Santíssimo Sacramento, a assistência frequente à Santa Missa, a
vida religiosa, a virgindade, a continência, as relíquias dos Santos, as
peregrinações, a patrística e a escolástica, e enfim tudo que a Igreja louva. “Devemos louvar todos os preceitos da Igreja,
com prontidão de espírito para buscar razões para os defender e, de modo
nenhum, para os criticar”. “Para em
tudo acertar, devemos estar sempre dispostos a acreditar que o branco, que eu
vejo, é negro, se a Igreja hierárquica assim o determina”.
44) As palavras “senso” e “espírito” são muito expressivas das
convicções profundas que modelam o pensamento do católico verdadeiro, e da
retidão de vontade daquele que, sob o influxo da graça, se faz identificar com
a doutrina da Igreja. — Nessa acepção, além do que já apontamos acima, são
correntes as expressões “senso moral”, “senso de justiça”, “senso de honra”,
“senso de hierarquia”, “senso do pecado”, “senso contra-revolucionário”. — E
“espírito católico”, “espírito de fé”, “espírito de sacrifício”, “espírito de
apostolado”. — Em sentido oposto à fé e à virtude, é comum falar em “espírito
de revolta”, “espírito protestante”, “espírito igualitário”, “espírito
revolucionário”, “mau espírito”. — Essas duas palavras são também largamente
usadas em terrenos do pensar e do agir humanos que de si não envolvem questões
de fé e moral, como ”senso comum”, “senso jurídico”, “senso médico”, “senso
prático”, “senso artístico”, “espírito público”, “espírito geométrico”,
“espírito de finesse”.
II.7. -
Teologia dogmática ou poesia devota?
45) Ao
que vem dito até aqui sobre o caráter orgânico do Magistério ordinário, caberia
uma objeção de fundo: tal concepção mistura teologia com poesia. Uma coisa,
diria alguém, é a Sagrada Teologia, científica, pura e fria, exposta nos
tratados de dogmática, moral, etc., e outra coisa é a beleza contida no
depósito revelado, que pode ser expressa na oratória, na poesia, na música,
etc., para edificação dos fieis.
46)
Assim formulada, a questão exige que se distingam com cuidado três campos bem
diversos: (i) de um lado há, sem
dúvida, a teologia fria, sistemática, científica, dos tratados, dos livros
técnicos, dos artigos especializados; (ii)
no extremo oposto há a pregação, que procura mover as almas para o bem; há a
poética, que canta a beleza da natureza humana elevada à ordem sobrenatural; há
a pintura, há a música, há todas as demais artes; há a pastoral, há o
apostolado; (iii) mas entre uma
coisa e outra há o vasto campo dos ensinamentos de Nosso Senhor irredutíveis a
termo, há a "excelência da doutrina
de Cristo, que não pode se esgotar em palavras escritas", como diz
Santo Tomás (Sum. Th., III, q. 42).
47) O
que defendemos, é que essas “outras
coisas que Jesus fez”, que não cabem nos livros, como também as que estão
registradas por escrito, contêm um sem-número de verdades que os manuais não
esgotam, e que devem ser ensinadas pela Igreja, como sempre o foram. É a
Tradição. É o caráter “orgânico”, e não mecânico ou livresco, do objeto da
Sagrada Teologia, e portanto dela própria. Recorde-se uma vez mais o texto em
que, dirigindo-se expressamente tanto ao fiel comum como ao filósofo e ao
teólogo, Pio XII ensina que a explicitação da verdade revelada se faz “de forma tão ordenada e orgânica como vemos estar constituída a própria
natureza da qual se extrai a verdade”.
48) E esse
ensino, a Igreja o faz essencialmente na sua pregação quotidiana por todo o
orbe, continuada através do tempo, verdade essa obliterada
por muitos daqueles que alimentam noções equivocadas sobre o Magistério
ordinário.
49)
São numerosas as passagens e figuras dos Evangelhos densas de doutrina e de
poesia, como o “Magnificat”, o “nunc dimittis”, o “deixai vir a mim os pequeninos”, os lírios do campo, as
bem-aventuranças, as parábolas em geral. — Isso ocorre igualmente nas epístolas
dos Apóstolos: “a caridade é benigna, não
pensa o mal...”, “combati o bom
combate...”; nos Atos dos Apóstolos: “cor
unum et anima una”; no Apocalipse, todo ele uma poesia forte, dura, cheia
de imagens pesadas, mas extremamente rica e verdadeira. — E já o mesmo se
encontra a cada passo no Antigo Testamento, com diversos livros estritamente
poéticos, dos quais nos seja permitido citar apenas dois incisos singelos: “é inútil levantar-vos antes do sol e
recolher-vos em alta noite, ó vós que comeis o pão do duro labor, porque aos
seus amados Ele distribui fartamente durante o sono”; e a divina Sabedoria
“estava com o Pai, ordenando a criação
inteira, e alegrava-se todos os dias, brincando diante dele todo o tempo,
brincando no orbe da terra” (Prov., VIII, 30-31).
Capítulo
III – Aprofundando a noção de Magistério ordinário orgânico
50) Uma
vez retro delineado, em seus elementos fundamentais, o caráter orgânico do
Magistério ordinário, é de rigor que, num passo seguinte, a matéria seja
desenvolvida, pormenorizada em seus aspectos relevantes, enriquecida com
exemplos e fatos de natureza variada, e sobretudo mais amplamente calçada em
documentos da Tradição. Dessa forma, ficará claro que a doutrina não é nova e
peregrina, mas velha e firme, hoje entretanto quase de todo esquecida.
51)
Para esse aprofundamento do tema, seria útil abordar, sempre à luz da Tradição,
várias questões a seguir indicadas. — Algumas, estritamente teológicas,
envolvem concepções equivocadas, hoje correntes, que dificultam a compreensão
do caráter orgânico do Magistério ordinário. Outras, mais práticas, vistas
muitas vezes à luz da História, levam a melhor intelecção tanto dos princípios
quanto das decorrências concretas da teoria do Magistério orgânico. Ainda
outras preveem objeções, débeis ou graves, ao que propomos. — É nosso propósito
procurar desenvolver essa vasta temática, na medida em que a Providência no-lo
permita.
52)
Enumerando várias dessas questões, não pensamos em classificá-las num esquema
sistemático, o que seria engessá-las, pois todas se entrelaçam entre si. Uma
exposição livre e sem preocupações acadêmicas parece-nos atender melhor aos
objetivos aqui visados.
III.1 - A doutrina clássica sobre o Magistério
ordinário
53) O Magistério ordinário vinha
sendo estudado desde antes do Vaticano I. Aquele conclave definiu a
infalibilidade do Magistério ordinário “universal”. De então a esta parte,
grandes autores têm desenvolvido a matéria com maestria, ao mesmo tempo em que
desvios não pequenos têm-se infiltrado nas exposições, às vezes as mais eruditas.
Não caberia aqui uma análise exaustiva do assunto. Pretendemos apresentar
oportunamente algumas observações sobre essa doutrina, que chamaríamos de
“clássica”, sobre o Magistério ordinário. – O ponto mais sensível dessa teoria
é a definição, pelo Vaticano I, da infalibilidade do Magistério ordinário
“universal”. — É também nossa intenção, a seu tempo, estudar as relações
harmoniosas e densas de ensinamentos preciosos, que existem entre essa doutrina
“clássica” e a do Magistério ordinário orgânico.
III.2 - Encíclica Mystici Corporis Christi
54)
Para mais sólida fundamentação da doutrina do Magistério ordinário orgânico, e
para seu amplo desenvolvimento no terreno dogmático, é de fundamental
importância um cuidadoso estudo da Encíclica de Pio XII Mystici Corporis Christi, de 1943.
III.3 - O “orgânico”, da biologia à metafísica e à
teologia trinitária
55) A
organicidade, cujo exemplar primeiro é a vida divina, exige melhor exame. Este
começará pelo órgão biológico. Passará à psicologia individual
e coletiva. Não poderá faltar estudo específico da sociedade orgânica, em
particular dos princípios da subsidiariedade, da complementaridade e tantos
outros. Serão aprofundados os conceitos de “povo” e “massa”. Subindo à
metafísica, ficará provado que Deus “tem
vida perfeitíssima e sempiterna, porque o intelecto dele é perfeitíssimo e
sempre em ato”
(Sum.
Th.,
I, q. 18, a. 3, c.). Chegando à teologia trinitária, será possível ver que “as processões das Pessoas são as razões da
produção das criaturas, enquanto incluem os atributos essenciais que são a
ciência e a vontade”
(Sum.
Th.,
I, a. 45, a. 7, c.)
III.4
- Hierarquia
e fieis
56) Cumpre aprofundar o princípio
de que as promessas especiais de Cristo para o Magistério da Igreja se
dirigiram apenas ao Papa e aos Bispos. São estes os depositários da doutrina
revelada, que a conservam, interpretam e transmitem intacta ao longo dos
séculos. Os fieis, entretanto, não são simples receptáculos mortos dos
ensinamentos da Hierarquia. Não são vasos de vidro, inertes. Como ensina São
Paulo, a doutrina é esculpida não em tábuas de pedra, mas nas tábuas de carne
do coração do homem. Assim, a missão dos fieis, aí incluídos teólogos, párocos,
sacerdotes, leigos, é de receber os ensinamentos da Hierarquia, inteligi-los,
elaborá-los, transmiti-los, tudo isso de forma orgânica e ativa. Tal concepção
se opõe a certa tendência, encontradiça cá e lá em alguns ambientes teológicos,
de considerar os leigos como elementos inevitavelmente infantis e abobados,
peso doutrinariamente passivo na vida da Igreja. Essa tendência recusaria aos
fieis um papel fundamental de preservação da fé, sobretudo nos momentos de
crise, como ocorreu no século IV, conforme expõe o Cardeal Newman (ver item nº
59, adiante).
III.5
- Doutrinas que a hierarquia aprova
57) Papa e Bispos não ensinam
apenas pela palavra escrita ou oral e por atos, gestos, símbolos, etc. Existe
também outra forma de Magistério verdadeiro e rico, que é ensinar aprovando
aquilo que é elaborado, proposto e divulgado pelos fieis. Assim, por exemplo,
os ensinamentos de Santo Tomás de Aquino, louvados, aprovados, e propostos como
obrigatórios para as escolas católicas por numerosos Papas, constituem
inquestionavelmente doutrinas que se incorporaram ao Magistério da Igreja. — A
aprovação de ensinamentos de simples fieis não é sempre e necessariamente tão
expressa e ampla como no caso de Santo Tomás. Tal aprovação é no entanto frequente
na vida diária da Igreja, devendo-se atribuir-lhe autoridade maior ou menor
conforme as circunstâncias e peculiaridades de cada caso, isto é,
considerando-se a natureza dos atos aprobatórios, seus termos e formas, seu
objeto, sua extensão no tempo e no espaço, enfim todas as suas circunstâncias.
III.6
- Aprovação tácita
58) Exigiria também estudo mais
circunstanciado a tese, absolutamente segura, de que a aprovação de
ensinamentos de simples fieis pela Hierarquia pode se fazer também de forma
implícita. O Papa e os Bispos não têm apenas o direito, mas têm obrigação
estrita e irrenunciável de condenar os erros que se infiltrem nos meios
católicos. Não podem calar-se, como São Pedro perante os algozes de Cristo.
Devem falar, oportuna ou inoportunamente. Se se calam, estão por esse silêncio
manifestando sua aprovação tácita ao que é ensinado às suas ovelhas.
III.7
- Cardeal Newman e o arianismo no século IV
59) Merece estudo especial, à luz
da doutrina do Magistério ordinário orgânico, a polêmica das últimas décadas do
século XIX sobre a crise ariana do século IV. – Em 1859, o Cardeal Newman
escreveu: “O dogma de Nicéia se manteve
durante a maior parte do século IV, não pela firmeza inquebrantável da Santa
Sé, dos Concílios ou dos Bispos, mas pelo consenso dos fieis. Durante certo
tempo, a massa dos Bispos falhou na confissão de sua fé. Pronunciaram-se em
sentidos diferentes, uns contra outros; por cerca de sessenta anos depois de
Nicéia, nada houve que se parecesse com um testemunho firme, constante,
consequente. Houve concílios pouco seguros, Bispos infiéis: debilidade, temor
das consequências, desorientações, ilusões, alucinações sem fim, sem esperança,
que quase alcançaram os rincões mais recônditos da Igreja Católica, Os poucos
Bispos que permaneceram fieis foram desacreditados e desterrados; o resto se
compunha dos que enganavam e dos que eram enganados” (The Rambler, julho de 1859, p. 214). – Acusado de heterodoxia, o
Cardeal Newman manteve sua posição, esclarecendo-a melhor em novos trabalhos. Em 1879 Leão XIII o elevou ao
cardinalato. E foi ele posteriormente objeto de uma carta laudatória de São Pio
X. — Nessa questão, não cuidaremos tanto da ortodoxia da tese Newman, mas
sobretudo do “consenso dos fieis”, sinal e reflexo do ensinamento do Magistério
ordinário orgânico.
III.8 - Bento XVI e as crianças de tempos passados
60) Já no item 28 do
primeiro trabalho desta nossa série sobre o
Magistério Ordinário, o Grande Desconhecido, intitulado “o Magistério ordinário pode ensinar por atos
e gestos”, aludimos ao sermão da quinta-feira santa, 5 de abril de 2012, em
que Bento XVI afirmou: “Os
elementos fundamentais da fé, que no passado toda criança sabia, são cada vez
menos conhecidos”. Ali observamos
tratar-se de uma “frase lapidar, que tem
força e porte
para
orientar a Pastoral e mesmo a Teologia dogmática em todo o futuro da Igreja”. Acrescentamos ainda que “nos
estudos amplos sobre o Concílio Vaticano II, que se estão desenvolvendo de modo
extraordinário nestas vésperas da comemoração de seu cinquentenário, essa frase
histórica de Bento XVI deve ser um marco básico para todos os teólogos
verdadeiramente católicos”. — Aprofundando essa
lição pontifícia, veremos como o Magistério ordinário orgânico infundia até nas
crianças uma mentalidade católica tão arraigada, um senso religioso tão agudo,
que nelas ficavam insculpidos “os elementos fundamentais da fé”, hoje “cada
vez menos conhecidos”.
III.9
- O “senso cristão” no ensino do Pe. Balić
61) Tornou-se muito conhecida,
nos meios especializados, uma conferência do Pe. Balić, OFM, professor do
Pontifício Ateneu Antoniano, dos padres franciscanos em Roma, pronunciada na
Universidade Gregoriana e publicada na revista Gregorianum em 1952 (vol. XXXIII, 1, pp. 106-134). Ele desenvolve
de modo brilhante a doutrina do “senso cristão” do católico fiel, distinguindo-a
do “sentimento religioso” modernista. Entendemos que se impõe uma análise
cuidadosa desse magnífico estudo, com o que se tornará patente o apoio sólido
que têm na neo-escolástica as teses aqui desenvolvidas sobre a formação da
mentalidade católica, sobre o espírito de fé, sobre o sentir com a Igreja.
III.10
- Gramsci, Santo Tomás e o lenhador católico
62) A passagem do marxista Gramsci,
já referida no item 37 retro, merece uma análise aprofundada. Na concepção
dele, o “mal” e a força da Igreja Católica vêm do fato de que Santo Tomás e o
fiel mais simples pensam da mesma maneira. Visto num quadro dogmático e
pastoral, esse fato, por ele apresentado como meramente político e sociológico,
carrega em si uma afirmação possante da capacidade do Magistério ordinário de
formar, moldar e consolidar, com o auxílio da graça divina, o espírito de todo
católico, dos maiores pensadores até o lenhador inculto. Essa teoria explica
melhor as noções da mentalidade católica, do senso católico, do espírito fiel,
do sentir com a Igreja, conforme exposto nos itens 30 a 44 retro.
III.11
- Santo Tomás e a estética medieval em De Bruyne
63)
O caráter orgânico do Magistério ordinário, como o da filosofia, da teologia e da Criação,
ressalta com notável esplendor nos escritos de Edgar de Bruyne (1898-1959), que
deveriam ser mais conhecidos. Belga, professor da Universidade de Gand,
senador, ministro das colônias, grande estudioso da Idade Média e de Santo
Tomás, publicou ele em 1946 Études
d‘Esthétique Médiévale. Os comentadores salientam que esse alentado
trabalho lançou as bases do que se denominaria mais tarde a “história das
sensibilidades estéticas”, expondo as diversas doutrinas do belo, de Boécio às
grandes sumas teológicas dos séculos XII e XIII, numa obra profundamente
inovadora, que mostrou como a civilização medieval fez do mundo um canto à
glória do "belo Deus". — Não
compreende o Magistério ordinário da Igreja, fundamentalmente orgânico, quem
não o vê como ordenado, em seu cerne, a cantar a glória do belo Deus.
III.12
- Uma página de Mons. Vacant pouco divulgada
64) Mons. Jean Michel Alfred
Vacant (1852-1901) foi convidado, em 1897, a coordenar a edição do monumental “Dictionnaire de Théologie Catholique”,
de cuja publicação só chegou a ver os primeiros fascículos. Em 1887, foi ele
premiado em Paris, num prestigioso concurso teológico, com sua tese intitulada
“Le Magistère Ordinaire de l’Eglise et
ses Organes”. A concepção básica de Magistério ordinário que ele aí
apresenta corresponde plenamente ao que propomos nesta série sobre o Magistério Orgânico, o Grande Desconhecido.
Afirma ele que “não só o Papa e os
Bispos, mas também os ministros inferiores da Igreja, os simples fieis e quase
todos os homens emprestam suas vozes a esse magistério ordinário e se tornam
seus instrumentos”, porque, “embora
todos os dons divinos nos venham pelo episcopado”, têm contudo os Bispos
seus “auxiliares, que os ajudam a cumprir
sua missão, sem sairem da dependência que lhes é devida e sem terem recebido
nenhum ministério”, como são os escritores católicos e os leigos que, “sem gozarem de nenhum cargo para instruírem
seus irmãos nas verdades da fé, fazem isso entretanto com a aprovação expressa
ou legitimamente presumida dos pastores; tais são os pais que educam seus filhos
nos princípios da fé católica e os professores que contribuem para a educação
cristã da juventude”. – Esse trabalho de Mons. Vacant deve ser aprofundado
à luz da doutrina do Magistério ordinário orgânico.
III.13
- Erros no Magistério ordinário
65) Na revista Catolicismo, de julho de 1969,
publicamos o artigo Pode Haver Erro em Documentos do Magistério Pontifício ou Conciliar?,
que foi incluído no livro Considerações
sobre o ‘Ordo Missae’ de Paulo VI, de l970, para o qual escrevemos ainda um
novo capítulo: Pode Haver Heresia em Documentos
do Magistério Pontifício ou Conciliar? – Ambos os textos constaram da
edição francesa do livro, La Nouvelle
Messe de Paul VI: Qu’en Penser? (Diff. de la Pensée Franç., Chiré en
Montr., 1975, 357 pp.). – Concluímos então que, “em princípio, não repugna a existência de erros em documentos não
infalíveis do Magistério, mesmo do Magistério pontifício e conciliar”, e
que “não vemos como excluir, em
princípio, a hipótese de heresia em documento oficial do Magistério pontifício
ou conciliar não revestido das condições que o tornariam infalível”
(respect. “Consid. ...”, p. 59 e 66,
e “La N. Messe ...”, pp. 308 e 318).
– Essas teses, embora já provadas, devem ser
agora atualizadas e aprofundadas, com base mais ampla na Tradição.
III.14 - Cristo não dotou a Igreja de uma
infalibilidade omnímoda e absoluta
66)
Paralelamente ao estudo da possibilidade de erros e heresias em documentos
magisteriais, seria importante desenvolver a tese de que Nosso Senhor poderia
ter ornado a Igreja com uma infalibilidade e uma inerrância omnímodas e
absolutas, mas não o fez. Já expusemos brevemente essa doutrina na refutação,
posta neste nosso site em 28 de dezembro de 2011, de artigo publicado em L’Osservatore Romano por Mons. Fernando
Ocáriz. Julgamos necessário que tal doutrina seja amplamente desenvolvida, pois
sua negação, muitas vezes implícita, mas sempre radical, está na raiz de um
sem-número de desvios correntes em nossos dias.
III.15 - “Minor
sed sanior pars”
67) Seria útil uma pesquisa
específica sobre a teoria tradicional da minor
sed sanior pars, para demonstrar que, em períodos de crise, de
singularidade histórica, esse conceito se aplica fundamentalmente aos que
permanecem com a Tradição. Para esse estudo será importante analisar a
interpretação dada pela Patrística, pela escolástica, e enfim por toda a
Tradição da Igreja, à frase do Evangelho: “quando
vier, o Filho do Homem encontrará a fé na face da Terra?”
III.16
- Magistério extraordinário papal e organicidade
68) O
Magistério extraordinário papal é orgânico? — Sem dúvida não o é na forma
solene pela qual dirime uma questão, ao modo de uma intervenção cirúrgica, por
isso mesmo dita “extraordinária”. — Também não o é enquanto não se atém
essencialmente ao que pensam os fieis, nem se subordina ao posterior consenso
da Igreja. — Mas é orgânico quanto ao caráter harmônico da doutrina que propõe,
a qual, no dizer de Pio XII, deve sobrepor verdade sobre verdade, sem rupturas
que desfigurariam o depósito revelado, levando a Igreja a transformar-se em
outra Igreja. E é igualmente orgânico quando, em certos casos, como nas
definições da Imaculada Conceição e da Assunção de Nossa Senhora, procura
conhecer previamente, e a fundo, o que creem os Bispos de toda a Igreja e os
fieis sobre a doutrina a ser definida. Seria muito bem-vindo um estudo mais
amplo de toda essa matéria.
III.17
- O Vaticano II e o Magistério ordinário orgânico
69) Quando,
num futuro que esperamos próximo,
estudarmos aspectos do Vaticano II à luz da doutrina do Magistério ordinário
orgânico, veremos que não são poucas as considerações a serem feitas sobre o
caráter não infalível de suas decisões, a despeito da posição daqueles para
quem foram elas inquestionavelmente infalíveis. As declarações papais sobre sua
natureza pastoral e não dogmático, colocam-no no terreno do não vinculante,
mais ainda quando nos últimos pontificados a preocupação tem sido muitas vezes
de dialogar, e não de ensinar. Em toda a Igreja, a sanior pars dos fieis jamais manifestou seu consenso em relação às
doutrinas novas, ditas “controvertidas”, como a da liberdade religiosa, a da
colegialidade, a do ecumenismo. Embora Bento XVI tenha dito que em tempos
passados as crianças conheciam os elementos fundamentais da fé, é certo que
ainda prevalece entre os fieis, eruditos ou simples, a noção da boa doutrina,
uma mentalidade católica genuína, um senso cristão intocado. Os espíritos
objetivos e não contaminados pelo relativismo modernista haverão, igualmente,
de estudar as relações entre o Concílio e o pós-concílio, entre o dito por
palavras e o proclamado por atos, entre o afirmado e o insinuado, entre o que
aprenderam em criança e o que hoje estão vendo. Numa perspectiva histórica, e
para que se entenda como os documentos do Vaticano II puderam e podem, ontem
como hoje, sobretudo num ictu occuli
primeiro, ser interpretados em sentidos diversos, será útil perguntar por quais
razões vários Bispos anti-modernistas julgaram poder assiná-los, razões essas
que têm estado ausentes dos atuais debates sobre o tema. Para esse, como para
qualquer outro estudo sério sobre o Vaticano II, será fundamental a obra, que
já se tornou clássica, Concilio Vaticano
II, Una Storia Mai Scritta, do Prof. Roberto de Mattei (Lindau, Torino,
2011).
Capítulo
IV – Síntese e conclusão
70)
Resumimos. O Magistério ordinário não contém, como muitos pensam, apenas os
pronunciamentos papais e episcopais escritos e os originariamente
orais. É um acervo muito mais vasto, copioso e rico, do mesmo modo que os
ensinamentos diretos de Nosso Senhor foram muito além do que consta no Novo
Testamento. Inclui doutrina não redigida, exemplos, formas de ser, de pensar e
de reagir perante fatos favoráveis ou adversos, falas na hora de falar,
silêncios na hora de silenciar, e tanta coisa mais que carrega consigo
ensinamentos, sendo portanto verdadeiros atos magisteriais.
71) Não
é, portanto, um Magistério ordinário livresco, meramente técnico e especulativo,
frio, morto, destituído de alma e de calor, que só pode levar ao tédio e a uma
vida sem sentido, sem atrativos, sem entusiasmos – numa palavra, a uma vida sem
vida. Segundo Pio XII, a própria natureza é orgânica, como devem ser a
filosofia e a teologia. E consequentemente, acrescentamos, também o Magistério
ordinário da Igreja.
72) Humildes escribas, jamais
pretenderemos pôr em palavras o que Santo Tomás declara nelas não caber. Mas
ele também ensina que “a luz natural da
inteligência é fortalecida pela infusão da luz gratuita da graça” (Sum. Th., I, q. 12, a. 13, c.).
E, no Adoro te devote, nos convida a
rezar “Praesta meae menti de te vivere,
et te illi semper dulce sapere” (“Dai à minha mente viver de Vós, e sempre
docemente Vos saborear”). ― Que, com a intercessão dele,
advenha a final vitória de Nossa
Senhora sobre os inimigos da Santa Igreja.